Tuesday, July 25, 2006

PRESENÇA SÍRIA NO LÍBANO: POR QUE DUROU TANTO?











Artigo publicado em INTER RELAÇÕES – FASM/SP. Ano 5, nº 18. Junho/2005. ISSN: 1808-2831


Em 1976, um ano após ter iniciado a Guerra Civil no Líbano, a Síria, alegando que sua interferência no conflito seria de vital importância para interromper a barbárie que havia se instalado no país vizinho, enviou suas tropas para o Estado libanês e lá permaneceu até o final de abril desse ano. Isso, apesar de a guerra civil ter findado em 1990, com a assinatura do Acordo de Taif[1].
Duas perguntas se sobrepõem às muitas que poderiam ser feitas acerca desse fato, quais sejam, por que a Síria permaneceu por tantos anos com suas tropas no Líbano se a guerra civil terminou há quinze anos e, por que a comunidade internacional permitiu que tal situação se prolongasse dessa maneira?
Utilizando a argumentação do governo sírio, a justificativa seria de que, apesar do fim da guerra civil, havia a necessidade de permanência em território libanês para a preservação da paz e da governabilidade do Estado, haja vista que a tensão confessional ainda existia. Não há qualquer originalidade na retórica síria e, abstraindo as especificidades do caso, torna-se semelhante às razões apresentadas pelos Estados Unidos para permanecerem com seu efetivo militar no Afeganistão e Iraque.
À segunda questão proposta, é necessário que façamos um breve reavivamento do panorama histórico em que ocorreu a intervenção síria para iniciarmos a análise. Primeiramente, não se pode abstrair o fato de que em 1976 o mundo vivia sob a forte influência da Guerra Fria e da ameaça de um conflito nuclear, caso houvesse enfrentamento entre as duas potências, Estados Unidos e União Soviética. Segundo, é fundamental lembrarmos de que a Síria mantinha estreitas relações com a União Soviética e, havendo qualquer agressão àquele país, poderia deflagrar o embate entre as potências – ainda mais se considerarmos que os soviéticos já tinham recuado durante a Crise dos Mísseis de 1962 e não parecia provável que o fariam novamente. Terceiro, era travada uma luta pela liderança no mundo árabe entre Síria, Egito e Líbia – que veio a evidenciar-se com a morte de Nasser[2] e posterior atrito entre Síria e Egito no tocante às questões relacionadas ao Estado de Israel. E, por fim, a questão da identidade sírio-libanesa, algo não resolvido e que fazia com que parte da comunidade muçulmana do Líbano buscasse a unificação entre os dois países enquanto a parte cristã tendia a buscar o estreitamento de seus vínculos com o Ocidente.
A partir dessas dificuldades latentes, vários atores estranhos ao conflito libanês vislumbraram a possibilidade de ‘discutir’, ali, suas questões e expor – indiretamente, financiando milícias locais – seus posicionamentos. De um conflito que, em tese, havia sido gerado devido à política sectarista que o governo cristão maronita implementava e dos questionamentos feitos pelos muçulmanos com relação às bases do regime confessional[3] que vigorava, acabou transformando-se numa guerra generalizada onde ‘discutia-se’: comunismo versus capitalismo, ‘Questão Palestina’, liderança no mundo árabe, efetividade das ações da ONU, cristandade versus islã, dentre outras questões.
O fato é que durante os quinze anos em que transcorreu a guerra civil libanesa a comunidade internacional presenciou atos da mais pura barbárie e não conseguiu interromper massacres e mais massacres nas diversas localidades do Líbano. Situação que o jornalista espanhol Domingo Del Pino, que fizera a cobertura da guerra, lembrou como sendo o retorno ao estado de natureza hobbesiano, que o historiador libanês Kamal Salibi atribuiu tal fato à estrutura político-social libanesa, baseada em ‘feudos’, onde o clã tinha mais importância que uma identidade nacional.
O que cabe ser analisado, conforme proposta, é a razão pela qual a Síria conseguiu permanecer tantos anos violando a soberania libanesa e nunca foi implementada nenhuma ação direta contra ela. Se aventássemos uma possibilidade de resposta através da teoria Institucionalista, provavelmente chegaríamos à conclusão de que, por mais que as instituições tenham implementado mudanças no sistema internacional[4], ainda não conseguiram sobrepor-se ao Estado e acabam exercendo, apenas, ‘influência’, mas sem resultados efetivos, prevalecendo, assim, a ordem anárquica do sistema internacional a qualquer outra tentativa de governo supranacional.
Dessa forma, por mais contestada que seja, por mais limitações que os neoliberais imponham à política neo-realista, talvez seja a mais efetiva para buscarmos respostas para a tão longa permanência síria no Líbano. Analisemos essa propositura a partir de três momentos: Primeiro; até o final da Guerra Fria os Estados Unidos preferiram intervir indiretamente no conflito e sempre respaldados pelas Resoluções da ONU, objetivando, assim, legitimar sua ação e não entrar em atrito direto com a União Soviética. Segundo; em 1982 os Estados Unidos sofreram atentados de ‘homens-bomba’ contra suas forças presentes no Líbano, o que fez com que ficassem expostos a uma nova modalidade de guerra, para a qual ainda não estavam preparados, fato que gerou ressalva por parte do governo ao se cogitar intervenções futuras contra os países muçulmanos; mesmo diante de toda a supremacia norte-americana conquistada no pós-guerra fria. E terceiro; quando não mais havia o risco de um confronto entre potências, o perigo de ataques terroristas deixou de ser um elemento inibidor e os ganhos relativos para uma intervenção militar ultrapassaram os absolutos – como exemplos podemos apontar as intervenções no Afeganistão e Iraque –, compôs-se o cenário adequado para que fosse feita a pressão sobre a Síria.
Os Estados Unidos, fundamentando uma futura ação contra a Síria no fato dela estar violando a soberania libanesa, nada mais fizeram que continuar aplicando as diretrizes de sua política externa para ampliar a zona de influência no Oriente Médio, evitando, assim, que surjam atores potenciais que coloquem em risco seus interesses geopolíticos.
A política externa realista norte-americana foi implementada para preservar os ideais neoliberal e democrático dos Estados Unidos, mas isso não garante que as tensões internas, no Líbano, tenham chegado ao fim. Até o momento, somente os problemas que foram inseridos no contexto da guerra civil tiveram algum encaminhamento; a disputa entre cristãos e muçulmanos, pelo poder no país, ainda continua sem uma solução definitiva e conciliadora. Além do fato de que a Síria, apesar de ter retirado suas tropas do território libanês, deixou muitos partidários seus para concorrer à eleição. Assim, somente o resultado desse pleito eleitoral poderá apontar para o caminho que o Líbano seguirá nos próximos anos, e se realmente a Síria está fora!

Bibliografia:
DEL PINO, Domingo. A Tragédia do Líbano: retrato de uma guerra civil. São Paulo: Editora Clube do Livro, 1989.
HÄRDIG, C. A. Brothers in Arms - An Analysis of the Syrian Military and Political Domination of Lebanon. Tese de Mestrado em Ciências Políticas. University of Linköping: Suécia, 2002.
SALIBI, Kamal. A House of Many Mansions - The History of Lebanon. California: University of California Press, 1988.


Renatho Costa
Bacharel em Relações Internacionais (FASM/SP) e mestrando em História (FFLCH/USP).

[1] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa –parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa, excluindo o sectariasmo e dirimindo as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa. Esse último item acabou ficando prejudicado, haja vista que Israel, somente, deixou o sul do Líbano em 2000 e a Síria em 2005. Nem todas as milícias depuseram as armas.
[2] O General Gamal Abdel Nasser foi o presidente do Egito dentre os anos de 1952 e 1966, propulsor do pan-arabismo, conseguiu alcançar o auge de seu projeto em 1958, ocasião em que foi concretizada a união entre Egito e Síria, dando origem à RAU (República Árabe Unida), contudo, o projeto não foi adiante e o nacionalismo acabou suplantando o pan-arabismo no campo político.
[3] A partir de 1943, quando o Líbano alcançou sua independência, segundo acordo firmado entre as lideranças dos principais grupos religiosos do país (basicamente, naquela época, cristãos maronitas e muçulmanos sunitas), a divisão do poder político se daria da seguinte maneira: o Presidente seria um maronita e o Primeiro-ministro um sunita. As cadeiras do Parlamento seriam divididas na proporção de 6 para 5 em favor dos cristãos, devido serem maioria no país, conforme dados do Censo de 1932. Em 1947, graças a sua maior influência política, os muçulmanos xiitas asseguraram para si o cargo de Chefe do Parlamento.
[4] A ONU baixou várias Resoluções acerca dos conflitos que ocorreram no Líbano, inclusive com relação às invasões israelenses (1978/82/96), mas nunca conseguiu solucioná-los completamente pois esbarrava nos interesses das potências que compunham o Conselho de Segurança.

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