Friday, January 12, 2007

DISSERTAÇÃO ANALISA PROCESSO DEMOCRÁTICO NO LÍBANO







Publicado em: Assessoria de Comunicação Social - AÇÃO – SDI
Sala de Imprensa – FFLCH/USP

12.01.2007

Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sdi/imprensa.html


Por Mariana Lenharo

O islamismo e suas implicações no processo democrático libanês é o tema da dissertação de mestrado em História Social apresentada por Renatho José da Costa no Departamento de História da FFLCH-USP. A dissertação tem por objetivo questionar se o Líbano é, de fato, uma democracia. Mais do que isso, a tese questiona o próprio conceito de democracia, analisando o caso do Líbano sob as teorias de diferentes estudiosos a respeito desse sistema político. Ela discute também o surgimento do grupo xiita Hizbullah, os motivos que levaram esse grupo a se tornar um partido político e as conseqüências desse surgimento para o sistema político libanês.

O Líbano passou a ser um estado autônomo em 1943, quando foi declarada a independência e o Mandato francês chegou ao fim no país. Para isso, os cristãos maronitas e os muçulmanos sunitas, grupos étnico-religiosos com maior prestígio político na época, realizaram uma divisão dos cargos político-administrativos entre os demais habitantes do Líbano, que incluíam os muçulmanos xiitas, drusos, ortodoxos gregos, cristãos ortodoxos, dentre outros menos representativos. Esse foi o chamado Pacto Nacional que, apesar de não ser um documento escrito, era um compromisso que permitia que o governo representasse os diversos grupos religiosos de maneira proporcional. Entretanto, a população não tinha uma identidade coletiva, ou seja, a mesma cultura, religião, língua e mentalidade. Esse fato impediu a formação de um Estado-nação.

Renatho Costa, autor da dissertação, cita dois fatos históricos que ele considera paradigmáticos para que os grupos religiosos deixassem de lado o projeto de integração para a formação de uma verdadeira nação. Um deles é o fato de os muçulmanos guardarem ressentimentos com relação aos cristãos, graças aos privilégios políticos que esse grupo passou a ter a partir da formação do estado libanês. O outro fato foi quando, como reação à perda da supremacia política para os cristãos, os muçulmanos fundamentalistas passaram a lutar por um governo baseado nos princípios islâmicos e não mais nas leis do homem, fato que implica a negação da própria existência do estado nos moldes ocidentais.

A dissertação analisa se existe ou não uma democracia no Líbano utilizando as teorias de três estudiosos: Robert Dahl, Arend Lijphart e Giovanni Sartori. Dahl acredita que a Democracia é um modelo idealizado que nunca conseguiu ser posto em prática. O que existe é a poliarquia, sistema no qual a sociedade tem graus variáveis de participação no governo do país. Para o teórico norte-americano, a poliarquia é o regime político adotado pelo estado como transição para a democracia. A categoria de “oligarquia competitiva” adotada pelo Líbano após a independência poderia ser um caminho para a poliarquia, segundo Dahl. Entretanto, o Líbano estagnou um estágio antes de chegar à poliarquia porque a garantia do cargo de presidência aos maronitas e do cargo de Primeiro-ministro aos sunitas impediu a formação de uma oposição política.

Já Lijphart afirma que, devido à grande heterogeneidade social existente no Líbano, o modelo ideal para o estado seria o modelo consociacional, já que ele poderia facilitar o processo de democratização. Essa teoria sugere que sociedades segmentadas podem se aproximar da democracia por meio da organização da população em grupos que possuem características em comum. As decisões, então, são tomadas pelas elites desses grupos e há um consenso sobre a partilha do poder e dos recursos.

Sartori afirma que, antes de nos perguntarmos se um estado é democrático, devemos definir qual é o conceito de democracia que se está adotando. Esse cientista político italiano tem um pensamento liberal e ele defende que para diminuir os problemas causados por um sistema representativo, a única solução é a formação de uma opinião pública. Para isso, dois fatores são essenciais: “um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação; e uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos”. No Líbano, porém, não existem condições propícias para que isso se concretize.

Analisando qual é a influência do Hizbullah, como partido político, no sistema político libanês, a dissertação conta a história desse grupo a partir de sua origem. O Hizbullah surgiu oficialmente em 1985. A princípio, era um movimento religioso criado para lutar pela soberania do estado libanês. Ele se tornou um partido político após a assinatura do Acordo de Taif, documento que introduziu importantes emendas constitucionais no Líbano, a partir do qual se iniciaria o processo democrático no país. De início, o Hizbullah recusou-se a se tornar um partido, mas depois ele se rendeu sem, porém, depor as armas sob a alegação de que estava em luta armada com Israel. O partido passou a se integrar perfeitamente ao sistema político-eleiroral libanês, com a ressalva de que ele tem total domínio sobre a vontade de seus parlamentares.

Renatho Costa, com sua dissertação, questiona se o Líbano tornou-se uma verdadeira democracia a partir do Acordo de Taif. Fatos que poderiam comprovar a existência desse sistema político no país são os seguintes: o parlamento voltou a ter eleições e a estrutura de poder foi modificada, tendo o presidente dividido seu poder com o Gabinete e com os muçulmanos que exercem o cargo de Primeiro-ministro (sunita) e Chefe do parlamento (xiita). Outro questionamento proposto é se o destino do Hizbullah é tornar-se um partido político convencional, ou se a invasão israelense no Líbano em julho de 2006 significou uma interrupção nesse processo, já que foi provocada pelo seqüestro e assassinato de soldados israelenses pelo partido. Esses questionamentos enriquecem a discussão sobre islamismo, que passou a fazer parte do cotidiano do grande público a partir dos atentados de setembro de 2001. Fazendo uma análise profunda do tema, Renatho alerta para a estigmatização dos muçulmanos como terroristas a partir dos atentados.

Leia, abaixo, entrevista com Renatho Costa.

Mariana: Em sua dissertação de mestrado, você afirma que a manutenção do Hizbullah como milícia “só é possível porque ainda não foi encontrada uma fórmula que reduza os desequilíbrios sociais existentes no país”. Você quer dizer que se o Estado assumisse suas funções nas localidades xiitas, a população xiita deixaria de apoiar as ações do Hizbullah?

Renatho: O processo de fortalecimento do Hizbullah adveio da exclusão que os xiitas sofreram por parte dos cristãos desde a formação do Líbano. Para a sustentação no poder, o sectarismo foi a palavra de ordem durante os governos cristãos.

Quanto mais as localidades xiitas eram “esquecidas” pelo Estado, mais dificultava a formação de um sentimento nacional, então, houve a abertura para que organizações xiitas exercessem a função do Estado, primeiramente o Amal e, depois, o próprio Hizbullah. Desde a década de 1960 o Amal passou a criar escolas, hospitais, clínicas odontológicas, mesquitas, faculdades, etc. E, com o surgimento do Hizbullah esse processo se intensificou. A identificação com o Hizbullah é, em muitos aspectos, mais forte que com o governo central libanês, porque é a organização xiita que assiste essa população.

Assim, não basta o governo libanês tratar as regiões xiitas da mesma maneira com que o restante do território, haveria a necessidade de rever a participação política desse grupo religioso que, no dias de hoje, é maioria no Líbano.

Esse seria apenas o primeiro passo para dirimir as diferenças sociais existentes no Líbano. Com um Estado tratando de maneira igualitária todos os grupos religiosos, o questionamento acerca da militarização do Hizbullah poderia ser discutido com mais ênfase e sem reservas. Hoje, os cristãos maronitas preferem “discutir” a desmilitarização do Hizbullah sem muito empenho porque juntamente com essa questão deveria ser revisto o direito de os maronitas exercerem exclusivamente o cargo de Presidente – havia algum sentido em 1943, quando o Censo de 1932 apontava para uma pequena maioria de cristãos sobre os muçulmanos, mas não nos dias de hoje.
Reitero, num Estado que não segregasse parte de sua população por ser de outra religião, abriria a possibilidade para discutir o projeto do Hizbullah para o Líbano, ou seja, se caberia a instauração de uma República Islâmica. E, nesse contexto, talvez o projeto islamista do Hizbullah ficasse enfraquecido. Hoje, muitos xiitas que integram o Hizbullah não questionam o programa do partido em suas particularidades, o integram e aceitam como é. Se tivessem outra base de sustentação (como o Estado) poderiam questionar a militarização do Hizbullah com mais veemência e, assim, chegar à deposição de armas. Isso porque haveria uma perda substancial de apoio da população e, sem a legitimidade dada pelos xiitas, o Hizbullah acaba perdendo sua base.

Mariana: A invasão israelense em julho de 2006 foi provocada pelo seqüestro e assassinato de soldados israelenses pelo Hizbullah. Essa ação foi inesperada tendo em vista o seu processo de “normalização” como partido? O que levou o Hizbullah a essa atitude?

Renatho: Em 2000 o Estado de Israel retirou-se oficialmente do Líbano – inclusive, segundo o entendimento da ONU – no entanto, essa questão não foi resolvida pelos principais atores envolvidos no conflito: Líbano, Síria, Israel e Hizbullah. Apesar da “restauração” da soberania libanesa, a região de fronteira entre os dois países (Israel e Líbano) continuou sendo bastante tensa e com ataques de ambas as partes. Invasões de grupos militares (do Hizbullah e israelense) também sucederam com certa freqüência. Ocorre que, segundo o entendimento do Hizbullah, a luta com o Estado de Israel não cessou em nenhuma de suas duas frentes: primeiramente porque eles entendem que não houve a retirada completa do território libanês, ainda há exércitos israelenses ocupando uma pequena faixa de terra conhecido por Shebaa Farms; segundo, porque de acordo com a doutrina islamista do Hizbullah, há a necessidade de destruir o inimigo israelense que usurpou as terras sagradas da Palestina e pretende expandir seus domínios até criar a “Grande Israel” – que seria uma extensa faixa de terra que se estenderia do sul do Líbano, a partir do rio Litani, até o Sinai.

Devido a essa tensão na fronteira, em outras ocasiões o Hizbullah chegou a seqüestrar soldados israelenses e trocar a sua liberdade por de outros membros da organização que haviam sido presos anteriormente. Em tese, essa era a intenção do Hizbullah quando aprisionou os soldados israelenses em julho de 2006, o inesperado, talvez, tenha sido a recusa em negociar – por parte do governo israelense e sua violenta ação, na seqüência.

Com relação à ambigüidade da ação do Hizbullah como partido político e milícia; como foi exposto na pergunta anterior, dentro do Líbano essa é uma questão “resolvida”, haja vista o Hizbullah não poder sofrer represálias por parte do governo. No entanto, talvez, visto sob o ponto de vista da concepção de Estado, seria incoerente haver uma milícia no país, haja vista o monopólio da violência ser exclusivamente exercido pelo Estado. Esse foi o argumento do Estado de Israel para atacar o Líbano, atribuindo a responsabilidade das ações do Hizbullah ao governo libanês. Assim, o governo estaria sendo conivente com as ações criminosas do partido/milícia xiita.

Mariana: Você menciona que a visão do jihad como guerra santa não é compartilhada por todos os muçulmanos. Você quer dizer que o jihad, em vez de ser um movimento de “ataque” ao ocidente, como é visto hoje em dia, é somente um movimento de resistência com relação à invasão da cultura ocidental?

Renatho: Primeiramente o jihad era entendido somente no sentido de “esforçar-se” no caminho de Deus. Ou seja, seguindo corretamente os ditames do Corão e da Sharia, que são os livros sagrados dos muçulmanos.

A partir da interpretação de alguns ideólogos islamistas, tanto sunitas quanto xiitas, essa visão passou a ser adulterada e assumiu o sentido de “guerra santa”, sendo aplicado a todos que não seguissem os ensinamentos do Islã.

Conforme o entendimento dos ideólogos do Hizbullah, o jihad que está sendo empregado contra os inimigos do Islã é o Jihad Defensivo, ou seja, aquele que é empregado contra os agressores dos féis, do país e da umma (comunidade de todos os muçulmanos). Seria um ato de defesa dos muçulmanos contra seus algozes.

Para o emprego de uma “guerra santa” de proporções mundiais, segundo, ainda, os ideólogos do Hizbullah, haveria a necessidade de o Profeta ou o “Imã Desaparecido” (os membros do Hizbullah fazem parte do grupo de xiitas conhecido por duodécimo. Eles acreditam na sucessão do Profeta até o 12º Imã, que teria desaparecido e que somente voltaria à Terra para estabelecer a ordem) decretarem o Jihad Elementar (al-Jihad al-Ibtida’i).

Mariana: O igualitarismo do Islã exclui as mulheres, os escravos e os infiéis. Nem o Hizbollah nem nenhum outro grupo islâmico jamais pensou em estender o igualitarismo da doutrina islâmica para esses grupos? Não existem questionamentos, dentro do próprio Islã, a respeito disso?

Renatho: Segundo o Corão, todos os muçulmanos são iguais. No entanto, no mesmo Corão há distinções entre mulheres e homens. Hoje, segundo a visão ocidental, essa é uma questão inconcebível. A igualdade foi assimilada de tal forma à vida ocidental que se tornou um valor universal, colocando, assim, em xeque com os costumes e tradições islâmicas. No entanto, em países como o Irã – financiador do Hizbullah e que instaurou uma República Islâmica em 1979 – a participação da mulher na sociedade vem sendo ampliada. Inclusive em países bastante fechados para inovações ocidentais – no que tange aos costumes –, como a Arábia Saudita, as mulheres adquiriram o direito de voto no ano passado.

Dessa forma, a participação da mulher na sociedade islâmica é objeto de estudo de diversos pesquisadores e tema bastante controverso. Com a pressão ocidental para a revisão desses valores, além do empenho de intelectuais muçulmanos, a mulher muçulmana tem sido objeto de vários questionamentos e análises. Ainda, nesses questionamentos, caberia a obrigatoriedade, ou não, do uso do véu por parte das mulheres. Algumas organizações islamistas sunitas utilizam “mulheres-bomba” em suas ações, reforçando a tese de que muitos conceitos vêm sendo revistos.

A questão dos “infiéis” também é um tema de grande relevância nas discussões acerca do islamismo. Mesmo organizações como o Hizbullah, que defendem a criação de um Estado Islâmico, já vem tendo seu pensamento flexibilizado, entendendo que esse projeto cada vez mais se afasta da realidade libanesa.