Tuesday, March 06, 2007

HIZBULLAH À MESA: ROYAL STRAIGHT FLUSH À VISTA?





de Renatho Costa*

Publicado em Revista Espaço Acadêmico - nº 70 - Março/2007 - Ano VI
ISSN 1519.6186
Disponível em: www.espacoacademico.com.br/070/70costa.htm

Quem dá as cartas no jogo Hizbullah-Israel? A trajetória desses dois atores vem proporcionando jogadas bastante elaboradas, muitas vezes, sem que se consiga entender exatamente qual é o objetivo do jogador. Um desses lances, bem elaborado... e estranho, se deu em julho último. Depois de um atrito de fronteira entre a milícia xiita libanesa (Hizbullah) e soldados israelenses, o Estado de Israel resolveu fazer uma jogada que poderia desestruturar seu adversário e, quem sabe, até a mesa.
Para entender a relação entre Hizbullah e Israel não é possível ater-se somente às questões religiosas, políticas ou econômicas. Tal é a quantidade de fatores que orbitam esses atores que, somente ampliando o raio de análise será possível entender melhor a razão para que o conflito não chegue ao fim.
Assim, esses atores vêm prolongando a partida, blefando e usando todos os recursos necessários para que o fim signifique a impossibilidade de o adversário retornar à mesa, ou seja, para que um vença e o outro perca tudo: um “jogo de soma zero”. E, talvez, o “perder tudo” não esteja sendo utilizado de maneira figurada, somente com a aniquilação da outra parte o jogo será concluído.
Outro aspecto interessante é o fato de que a mesa aonde o jogo se desenvolve continua a atrair muitos espectadores. Talvez o termo espectador não caiba nesse contexto, haja vista, serem muito mais que passivos observadores. Alguns torcem pela vitória de um dos atores por questões políticas, outros, por questões ideológicas, temos ainda aqueles que se alinham religiosamente à causa, por fim, também há os que apenas querem utilizar o jogo para obter vantagens colaterais.
De fato, mesmo quando o jogo principal entre Hizbullah e Israel tem uma trégua estratégica, os demais espectadores acabam assumindo outros papéis no intuito de conseguir as vantagens que buscavam ou, quiçá, recolher os louros da vitória com as apostas que fizeram na última rodadas de cartas que foi jogada.
O mais interessante nesse jogo não é saber quem irá ganhar, uma vez que, como se pressupõem, o final está muito distante porque não advirá apenas com a derrota momentânea do adversário, mas sim com seu compromisso de que não voltará à mesa nunca mais, e isso dificilmente acontecerá. A partida entre esse dois atores é longa e marcada pelas revanches. Perder hoje é apenas o resultado de uma mão de cartas mal dada... E sempre haverá quem empreste uma ficha para que o jogo não termine.
Então, entender o conflito entre Hizbullah e Israel não é o mais importante se o objetivo for conhecer os atores, para isso, deve-se observar como esses espectadores do jogo influem na partida. E mais, saber até onde poderão estender essa influência.

UM CENÁRIO INÓSPITO
Desde o início da década de 1980 o cenário internacional passou a conhecer o Hizbullah. O Líbano encontrava-se numa Guerra Civil que iniciara em 1975 e que já havia dizimado o país. A população xiita – que não era tratada como os demais cidadãos libaneses, sendo subjugada e vivendo em condições políticas, sociais e econômicas muito inferiores –, gradualmente foi se desprendendo do Estado e estreitando suas relações com as organizações que supriam suas necessidades. Primeiramente tivemos o Amal, depois, com a secularização dessa organização, houve a ascensão do Hizbullah.
Assim, o Hizbullah passou a atender grande parte das necessidades da população xiita libanesa. Criou escolas, hospitais, consultórios odontológicos, faculdade, mesquitas, etc. Cada vez mais cumpria os deveres do Estado e, num momento ímpar, quando a Guerra Civil colocava em xeque a autoridade central do país – desempenhada por cristãos maronitas – a ligação da população com o Hizbullah acabou se intensificando.
Como a Guerra Civil pode ser entendida como o resultado de uma demanda da população xiita – e mesmo de outros grupos excluídos do poder, como sunitas e drusos – por uma maior participação nos desígnios do Estado e fim do sectarismo político, é bem provável que o Hizbullah surgisse para atender os anseios de sua comunidade. No entanto, esse momento foi precipitado pela presença do Estado de Israel no conflito libanês.
Em 1978 os israelenses invadiram o Líbano no intuito de frear as atividades militares da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), porém, foi em 1982 que o exército de Israel invadiu o país, marchou até Beirute, expulsou a OLP e, ao retornar, acabou criando a “Zona de Segurança” numa faixa que abrangia 10% do território libanês.
Logo no início dos anos de 1980, ainda sem a formalização do Hizbullah, outras organizações menores – que futuramente viriam a integrar-se ao Hizbullah – programaram grandes atentados com “homens-bomba” contra alvos estadunidenses, franceses e israelenses.
Essas ações mudaram o rumo da história libanesa. A luta numa guerra convencional facilmente seria vencida por Israel, ou mesmo pelos Estados Unidos, entretanto, frustrados com a derrota no Vietnã, o governo norte-americano, após o atentado ao seu quartel em Beirute, optou por retirar suas tropas do Líbano antes que fosse tarde demais.
A grande falha dos Estados Unidos foi ter permanecido no Líbano após a retirada dos milicianos da OLP. No intuito de impedir que a Guerra Civil se alastrasse ainda mais pelo país e se tornasse mais sangrenta do que já era; cada vez mais o exército norte-americano foi se alinhando aos israelenses e maronitas, contra muçulmanos e drusos. A retaliação não demorou e, em 1983, 241 militares foram vitimados com a explosão de um caminhão-bomba em frente ao quartel general dos marines. (JABER, 1997)
Nesse panorama, em 1985, o Hizbullah divulga sua Carta Aberta, na qual fazia uma opção fundamentalmente estratégica ao escolher o inimigo comum de grande parte dos muçulmanos (o Estado de Israel) para ser alvo de sua luta, ante mesmo a direcionar suas forças na solução das questões internas libanesas. O Hizbullah continuava envolvido na Guerra Civil, entretanto, ao optar por travar sua lutar contra a existência de Israel, conforme a Carta Aberta explicitava,

A Necessidade de Destruição de Israel[1]
Nós vemos em Israel a linha de frente dos Estados Unidos em nosso mundo islâmico. É um inimigo odiado que deve ser combatido até que os demais, também odiados, tenham o que merecem. Esse inimigo é o maior perigo para nossas futuras gerações e para o destino de nossas terras, particularmente porque ele glorifica as idéias de assentamentos e expansão. Iniciadas na Palestina e ansiando expandir até a extensão da Grande Israel, do Eufrates ao Nilo.
Nossa primeira hipótese em nossa luta contra o Estado de Israel é que a entidade Sionista é agressiva em sua acepção e constrói em terras retiradas de seus donos, ao custo dos direitos do povo muçulmano. Portanto, nossa luta só terminará quando essa entidade for eliminada. Nós não reconhecemos nenhum acordo com ele [Israel], nenhum cessar fogo e nenhum acordo de paz, seja em separado ou consolidado.
Nós, vigorosamente, condenamos todos os planos de negociação com Israel e consideramos todos os negociadores como inimigos, pela simples razão de que cada negociação é nada menos que o reconhecimento da legitimidade da ocupação Sionista da Palestina. Portanto, nós nos opusemos e rejeitamos os Acordos de Camp David, as propostas do Rei Fahd, o Plano Fez e Reagan, as propostas de Brezhnev e franco-egípcia, e todos os outros programas que incluem o reconhecimento (mesmo o reconhecimento implícito) da entidade Sionista.


conseguia contar com o apoio de grande parte do mundo muçulmano e dos palestinos; abrindo possibilidades, inclusive, para receber apoio financeiro de outros Estados muçulmanos que não somente Irã e Síria, que desde o início dos movimentos xiitas apoiaram o Hizbullah contra o Estado de Israel.
Apesar de a Guerra Civil ter chegado ao fim em 1990, com o Acordo de Taif[2], a relação entre Hizbullah e Israel não sofreu alteração, haja vista os israelenses terem permanecido em território libanês até 2000. Outro fato de grande importância, e ligado ao ano de 1990, diz respeito à transformação do Hizbullah de milícia em partido político. A partir dessa data, de certa forma, o Estado libanês legitimou a luta do Hizbullah contra Israel e deu-lhe um valor institucional. Essa questão seria bastante atacada por Israel durante sua última invasão em julho último, isso porque, se o Hizbullah encontra amparo e reconhecimento dentro do Estado libanês, segundo o entendimento dos israelenses, deveria responder por suas ações também.
O final da Guerra Civil também trouxe algumas mudanças no panorama político libanês, no entanto, não atendeu, em sua plenitude, à demanda da população muçulmana. A participação dos muçulmanos nos cargos eletivos e na administração pública, que atendia a proporção de 6 para 5 em prol dos cristãos[3], foi alterada para 50% para cada grupo religioso, ou seja, participação igualitária, porém, já em 1990 a população muçulmana era superior à cristã. Os poderes do presidente (cargo exercido exclusivamente por cristãos maronitas) foram diluídos dentre os membros do Gabinete, Primeiro-ministro e Chefe do Parlamento – esses dois últimos, cargos reservados aos sunitas e xiitas, respectivamente.
Um item que constava no Acordo de Taif, no entanto não foi cumprido em sua plenitude, diz respeito à deposição de armas por parte das milícias que dominavam o país durante o período da Guerra Civil. Com a pressão do governo sírio e total apoio dos Estados Unidos – que pretendiam isolar o Iraque, por isso deram apoio ao plano de paz implementado pelo governo sírio e outras autoridades do mundo árabe –, todos os grupos que faziam oposição ao Acordo de Taif foram obrigados a capitular ou deixar o país. Exceção feita ao Hizbullah, que conseguiu obter o aval do governo sírio para continuar lutando pela soberania do Estado libanês.

UMA JOGADA ARROJADA
Como partido político, o Hizbullah conseguiu ampliar sua zona de atuação e obter prestígio perante a população xiita, contudo, não podia ampliar sua participação no cenário político devido à legislação eleitoral que determina qual a participação de cada grupo religioso no Legislativo. Assim, a disputa do Hizbullah dava-se (e ainda se dá) com o Amal, outra grande força política xiita libanesa.
Nas eleições de 1992 e 1996 o Hizbullah conseguiu obter grande êxito, mas não maior que o pleito eleitoral de 2000, quando ainda usufruiu dos louros da vitória obtida sobre o Estado de Israel, o qual havia sido derrotado e expulso do Líbano pelos milicianos do Hizbullah.
Ao contrário do procedimento que pautava a relação entre os grupos religiosos durante a Guerra Civil, quando o Hizbullah recuperou os territórios do sul do Líbano, sua postura não foi retaliar a população dos enclaves cristãos que apoiaram os israelenses, ou mesmo executar os membros da milícia maronita SLA (South Lebanon Army – Exército Libanês do Sul) – que dava suporte militar à ocupação israelense –, contrariamente, as autoridades do Hizbullah prenderam os apoiadores da ocupação e delegaram ao governo libanês julgá-los.
A partir de 2000 a legitimidade da luta do Hizbullah, que se apegava à necessidade de restaurar a soberania territorial do Líbano, também teve de ser revista e, cada vez mais latente se tornou o projeto da organização islamista que havia sido difundido em sua Carta Aberta. A luta com o Estado de Israel não mais poderia fundamentar-se na questão territorial, mas sim, contra o projeto sionista de criação da Grande Israel. Ao mesmo tempo, a questão da restauração da soberania do Líbano não foi resolvida completamente, os membros do Hizbullah alegavam que Israel ainda ocupava uma parcela do território libanês conhecido por Shebaa Farms.
À parte o questionamento acerca da propriedade do território – haja vista a ONU entender que Israel cumpriu a determinação de suas Resoluções e deixou o território libanês e, por sua vez, parcelas dos libaneses e sírios alegarem que Shebaa Farms sempre foi libanesa e que Israel a conquistou durante a Guerra dos Seis Dias (1967) –, o fator principal é que o Hizbullah conseguiu, mais uma vez, burlar o que fora assumido no Acordo de Taif e permaneceu armando. Segundo suas autoridades, enquanto não fosse reconquistada a soberania territorial libanesa, na sua totalidade, o Hizbullah não poderia depor as armas.
Nesse aspecto, o apoio do governo sírio à decisão do Hizbullah foi providencial. Para que a Síria continuasse tendo esperanças de reaver as Colinas de Golã – também perdidas durante a Guerra dos Seis Dias, para Israel –, seria necessário manter a tensão entre a milícia libanesa e Israel, assim, os sírios poderiam defender seus interesses indiretamente.
Com a manutenção do argumento de “restauração da soberania territorial”, ao mesmo tempo em que a credibilidade internacional perdera força, a vitória do Hizbullah sobre o exército israelense o elevou a uma categoria inesperada de único ator a ter conseguido vencer o Estado de Israel. E, com isso, conseguiu absorver o apoio de outros grupos religiosos libaneses.
A tendência natural seria o Hizbullah ampliar sua base de sustentação nas eleições de 2005, inclusive, superando seu maior adversário, o Amal. Para o crescimento do partido político Hizbullah, muito da maneira original com que uma organização islamista era vista deixou de constar no perfil do partido político xiita libanês. (HAMZEH, 2004)
Se, no programa do Hizbullah ainda consta a intenção de que o Líbano se transforme num Estado islâmico, as declarações de seu Secretário-geral, Sayyed Hassan Nashallah, demonstram que já houve sua flexibilização. Cada vez mais Nashallah assume o discurso de que o modelo ideal para o Líbano continua sendo o iraniano, contudo, esse é um projeto que se encontra distante da realidade libanesa.
O segundo passo na direção contrária do islamismo puro se deu quando o Hizbullah aceitou fazer parte do Gabinete do Primeiro-ministro Fouad Siniora. Após o resultado das eleições de 2005 o Hizbullah conseguiu ampliar sua participação no Parlamento e, também, assumiu duas pastas no Gabinete (Ministério da Energia e Água, com Mohamad Fneich; e, Ministério do Trabalho, com Trad Hamadé), além de contar com o apoio de outro parlamentar independente no Ministério das Relações Exteriores, Faouzi Salloukh, que acompanha o Hizbullah.

AS CARTAS MUDAM DE MÃOS
De 2000 a 2005 o Líbano viveu um período de relativa tranqüilidade. O Hizbullah, no intuito de fortalecer sua representatividade em algumas regiões do país, aceitou compor sua lista eleitoral com parlamentares cristãos. (HAMZEH, 2004) Mais uma transformação antes inaceitável para os padrões de uma organização islamista. Esse pragmatismo surtiu efeito positivo nas eleições de 2005.
Mas o ano de 2005 não ficou marcado, apenas, pelo crescimento da participação do Hizbullah no Parlamento libanês, dois outros fatos tiveram repercussão direta nesse resultado: o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri, em 14 de fevereiro de 2005; e, a retirada das tropas sírias do Líbano, após quase trinta anos de influência direta sobre o país.
A morte de Hariri gerou uma comoção nacional e levou a população às ruas clamando por justiça. Hariri cresceu politicamente e financeiramente graças às suas estreitas relações com o Poder e, indiretamente, com o governo sírio. Entretanto, no final de 2004, quando a Síria receava tornar-se o próximo alvo dos Estados Unidos na “Luta contra o Terror”, o governante sírio, Bashar al-Assad, resolveu prestar apoio ao Presidente libanês, Emile Lahoud, no intuito obter solidariedade da população cristã libanesa para a manutenção de sua presença militar no Líbano. Para tanto, Assad conseguiu influir na prorrogação do mandato presidencial de Lahoud por mais três anos.
Os protestos de Hariri fizeram com que ele rompesse com Assad e se tornasse um dos críticos mais ferozes da presença síria no Líbano. Sua morte acabou gerando o surgimento de movimentos populares que pediam abertamente a saída das tropas sírias do Líbano. A “Revolução do Cedro”, como ficou conhecido esse momento histórico, alcançou seus objetivos nos meses seguintes com a retirada oficial dos militares sírios de solo libanês.
Durante a “Revolução do Cedro” as posições do Hizbullah e do Amal foram totalmente a favor da permanência das tropas sírias no Líbano. Esse posicionamento estava ligado ao vínculo entre as lideranças do Hizbullah e Assad. A Síria continuava precisando do Hizbullah para exercer influência sobre a política libanesa, assim como para fazer frente a Israel. E o Hizbullah, por sua vez, tem na Síria um aliado contra Israel e elo logístico para receber apoio do Irã. Daniel Byman, em artigo da Foreign Affairs, apresentava suas dúvidas sobre o futuro do Hizbullah com a retirada das tropas sírias, mas via boas perspectivas pela frente:

O Hizbullah é muitas coisas: um grupo terrorista, um movimento de guerrilha, um fantoche do Irã e da Síria para ser usado contra Israel, o campeão da comunidade muçulmana xiita do Líbano, uma forte liderança política libanesa e, inclusive, um construtor de hospitais e escolas. Através de todos esses papéis, ele exerce notável influência sobre o Líbano, mas não é claro quais aspectos da organização virá a se destacar se as forças sírias deixarem o país. Se o Líbano estiver livre da dominação síria os Estados Unidos aceitariam que o Hizbullah participe de um novo governo libanês. Washington exploraria essa participação para empurrar o Partido de Deus da influência síria – e, em última instância, do terrorismo e das atividades anti-Israel. No recente discurso do presidente George W. Bush ele disse que o Hizbullah poderia provar que não é uma organização terrorista “depondo as armas e não ameaçando a paz”, atacando no tom correto. (BYMAN, 2005)

Apesar de toda a força das manifestações programadas pelo Hizbullah o governo sírio foi obrigado a aceitar os desígnios da Resolução 1559 da ONU (8 de outubro de 2004), que exigia a retirada de todas as tropas estrangeiras de solo libanês para a restauração de sua soberania, assim como o desarme das milícias ali em ação.

AS REVIRAVOLTAS DAS CARTAS À MESA
Apesar de a eleição libanesa de 2005 ser considerada a primeira livre da ação síria em quase três décadas de ocupação, muitos analistas acreditam que a influência do vizinho não deixou de existir. Alguns parlamentares que foram eleitos – além dos membros do Hizbullah e Amal – também continuaram leais à Assad. Assim, é possível concluir que o governo libanês ainda não conseguiu trilhar um caminho independente e que objetive o desenvolvimento do Estado.
Se a saída das tropas sírias do Líbano significou certa derrota para o Hizbullah, sua influência política não foi abalada. Com a eleição de 14 parlamentares, o Hizbullah manteve seu prestígio em alta e passou a utilizá-lo para influir nos rumos do jogo. Nesse aspecto, a presença de Fouad Siniora como Primeiro-ministro significava uma barreira a ser transposta. Siniora fora eleito pelo bloco que lutara contra a presença síria no Líbano e, com isso, mantivera sua bandeira hasteada nesse sentido.
A situação política libanesa, que já era tensa, tornou-se ainda mais complicada quando, em julho de 2006, o Hizbullah manteve um atrito com militares israelenses e acabou seqüestrando dois deles, ferindo mortalmente outros.
Israel exigiu a devolução dos militares, ou de seus corpos, mas o Hizbullah somente aceitaria fazê-lo através de uma troca de prisioneiros. A negociação não teve sucesso e o governo israelense resolveu atacar o Líbano para destruir as bases do Hizbullah e seu poder de barganha. A força militar empregada pelo Estado de Israel provocou, em pouco mais de um mês de ataques, a destruição da região sul do país, assim como de sua infra-estrutura. Mas os ataques não se concentraram no sul e a capital também foi alvejada pela artilharia israelense, provocando o bloqueio aéreo, naval e terrestre do país.
Nesse período que o Líbano foi bombardeado, o Hizbullah não esmoreceu e continuou enfrentando o Estado de Israel com seus mísseis katiusha. O saldo final dos ataques foi a morte de mais de 1000 libaneses e uma centena de israelenses. Israel não conseguiu reaver seus soldados e o Hizbullah saiu fortalecido perante a população libanesa por ter lutado contra o invasor.
Essa vitória moral do Hizbullah colocou o governo de Siniora em xeque. Potencializado pelo fracasso israelense, o Hizbullah passou a exigir a renúncia de Siniora e a convocação de novas eleições. Diante da recusa o Hizbullah caracterizou sua retirada do governo com o desligamento de seus parlamentares do Gabinete.
Como é possível perceber, o Hizbullah conseguiu jogar sua partida estudando as características de seus adversários e aproveitando seus erros. A grande dúvida que se apresenta no momento é se o Hizbullah, de fato, transformou-se num partido político diferenciado – não compatível com o modelo Ocidental –, ou fez disso uma estratégia para chegar a esse momento e implementar seu projeto islamista.
É bem provável que o Hizbullah dos anos de 1980 não exista mais, exceto na visão de alguns integrantes mais radicais, no entanto, o que se apresenta é algo ainda mais delicado: a revisão do status da população muçulmana no Líbano. O Hizbullah alcançar essa força significa que, ou será revisto o modelo político libanês, ou o país poderá ser catapultado a outra guerra civil.
No momento atual, ainda repleto de incertezas, a jogada feita pelos israelenses com a invasão de julho pode ter sido um grande blefe. Como não havia a possibilidade de ganhar o jogo na mesa, resolveu reacender as diferenças internas dentre os grupos religiosos libaneses para que eles mesmos se destruíssem e, caso algum deles volte à mesa, as cartas já estarão arrumadas para Israel baixar um Royal Straight Flush com o tão esperado final do “jogo de soma zero”!

BIBLIOGRAFIA
BYMAN, Daniel. “Hezbollah’s Dilemma” In: Foreign Affairs. 13/04/2005, disponível em: www.foreignaffairs.org.
HAMZEH, Ahamad Nizar. In the Path of Hizbullah. Syracuse: Syracuse University Press, 2004.
HARIK, Judith Palmer. Hizbullah, the changing face of terrorism. Londres: I. B. Tauris, 2004.
LEWIS, Bernard. O Oriente Médio. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1996.
JABER, Hala. Hezbollah, born with a vengeance. New York: Columbia University Press, 1997.McDOWALL, David. “Lebanon: a conflict of minorities” In: Minority Rights Group. Report n. 61. London, 1986.




Notas:

* Doutorando em História (FFLCH-USP), Mestre em História (FFLCH-USP) e Bacharel em Relações Internacionais (FASM-SP).

[1] Este parágrafo não apareceu na tradução original publicada (em língua inglesa) pelo ‘Jerusalem Quaterly’. É possível que essa omissão seja devida ao fato de que a fonte (al-Safir) não incluiu este texto para a tradução, o qual aparece no original do Programa do Hizbullah. O Programa original foi publicado em 16 de fevereiro de 1985. O porta-voz da organização, Sheikh Ibrahim al-Amim, leu o Programa na Mesquita al-Ouzai em Beirute ocidental e, mais tarde, foi publicado como uma carta aberta “para todos os Oprimidos no Líbano e no Mundo”. Tem de ser enfatizado o fato de que em nenhum lugar o Hizbullah publicou o texto completo da propaganda da organização, eles preferiram publicar o programa eleitoral de 1996, o qual estava destinado à específica campanha de propaganda da organização, antes das eleições Parlamentares libanesas de 1996. (ICT – The Institute for Counter-Terrorism, www.ict.org.il)
[2] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa – parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa no período Pós-guerra civil. Excluía-se, assim, o sectarismo e dirimia as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como as tropas de Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa. Esse último item acabou ficando prejudicado, haja vista que Israel, somente, deixou o sul do Líbano em 2000 e a Síria em 2005. Nem todas as milícias depuseram as armas.
[3] Essa proporção foi estabelecida nos primórdios da criação do Estado libanês, no início do século XX, tendo como base o Censo populacional que havia sido feito em 1932 e que apontava uma pequena maioria de cristãos sobre os muçulmanos, algo na ordem de 4%. Apesar de ter havido grandes alterações no transcorrer da história libanesa, os cristãos maronitas, que mantinham alguns privilégios devido a pseudo-maioria apontada em 1932, não permitiam que outro censo fosse feito. (McDOWALL, 1986)