Saturday, August 05, 2006

ENTREVISTA À RÁDIO CULTURA FM

PROGRAMA "ATENÇÃO BRASIL"


Segunda-feira, 31 de julho de 2006.

Entrevista concedida à repórter da Rádio Cultura, Sirlei Ribeiro.

REPÓRTER: A criação de um estado islâmico no Líbano é um dos ideais do Hezbollah, mas dificilmente o grupo xiita conseguirá atingir esse objetivo, na visão do pesquisador paulistano Renatho Costa. O status que a organização atingiu na democracia libanesa é o principal obstáculo para um regime nos moldes da República Islâmica do Irã.

RENATHO COSTA: O Hezbollah, apesar de ser uma organização islamista, ela é bastante pragmática. Então, ela foi se transformando dentro do histórico recente do Líbano. O Hezbollah aceita se tornar um partido político, e depois, posteriormente participar das primeiras eleições pós-Guerra Civil no Líbano. Então, a partir daí a gente já entende que é uma organização diferenciada das outras islamistas puras. Porque não seria compatível com a filosofia, com o pensamento islamista, essa participação política.

Ouça a entrevista completa através do áudio, clicando abaixo.

Tuesday, August 01, 2006

DE VOLTA PARA O FUTURO

O LÍBANO TORNA-SE REFÉM DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA

Renatho Costa*

Depois de mais de uma semana de mortos e feridos nos confrontos entre Israel e Hezbollah, não há muito a fazer exceto tentar entender as motivações para uma ação de proporções tão desmedidas. A desproporcionalidade com que os israelenses revidaram ao seqüestro e assassinato de seus militares na fronteira entre o Líbano e Israel foi algo inesperado. Não que o passado dos conflitos entre esses atores não levasse a uma conclusão como essa, haja vista poderem ser listados vários conflitos e massacres nos diversos enfrentamentos entre eles, mas nesse momento em que contabilizam-se quase quinhentos mortos e, somente 10% deles são israelenses, faz-se necessário parar e refletir acerca dos fatos.
Decidir atacar o Líbano e partir para o extermínio dos integrantes do Hezbollah teria sido a razão que levou Israel a mobilizar suas tropas na fronteira entre os dois países e iniciar os bombardeios sobre o Líbano. Uma estratégia repetida, se nos reportarmos aos idos dos anos de 1980, quando a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) atuava livremente no Líbano, tendo, inclusive, o respaldo do governo libanês e da comunidade árabe para permanecer no sul do país
[i] e estruturar sua ofensiva contra Israel. Naquele momento, liderados pelo General Ariel Sharon, os exércitos israelenses marcharam sobre o Líbano até chegarem em sua capital, Beirute. O ano era 1982 e essa ação militar passou a ser conhecida por ‘Paz para a Galiléia’. De fato os israelenses conseguiram alcançar seus objetivos e expulsaram Yasser Arafat (líder da OLP), sua cúpula e comandados para fora do país, exilaram-se na Tunísia.
Contudo, não é possível deixar de mencionar o rastro de violência que essa ação deixou no Líbano, principalmente em episódios como o ocorrido no subúrbio de Beirute, onde encontrava-se o campo de refugiados palestinos de Sabra e Shatila. Entre os dias 16 e 18 de setembro daquele ano, a milícia falangista
[ii] adentrou ao campo de refugiados e promoveu o extermínio de quase dois mil palestinos, sendo em sua maioria, mulheres, crianças e idosos. Durante a ação dos falaginstas o exército israelense cercou Sabra e Shatila e não deixou que ninguém entrasse no local.
De fato a comunidade internacional externou sua insatisfação com a atitude dos israelenses e, mesmo dentro de Israel o General Sharon teve de prestar esclarecimentos à Comissão Kahan
[iii], que fora instituída para analisar o procedimento de seus militares. Internacionalmente Sharon foi condenado por genocídio por um tribunal instituído na Bélgica, contudo, nunca chegou a ser preso e conseguiu reerguer sua carreira política em Israel alcançando, posteriormente, o posto de primeiro-ministro.
Mesmo diante das atrocidades ocorridas no Líbano durante o ano de 1982, o exército israelense permaneceu na capital até que a pressão internacional fez com que Beirute fosse evacuada. Com o recuo, Israel permaneceu estacionado no sul do país, onde criou a ‘Zona de Segurança’ – uma região que contornava a fronteira entre os dois países e que ocupava 10% do território libanês. A razão alegada para a criação da ‘Zona de Segurança’ subsistia no fato de que preservando aquele território, o norte do Estado de Israel permaneceria livre dos ataques aéreos das forças da OLP – ou qualquer outro grupo de resistência.
A dominação do sul do Líbano por parte de Israel perdurou até 2000, quando a milícia
[iv] que lhe dava apoio em solo libanês não agüentou à pressão do Hezbollah e desmobilizou-se. Fragilizado e sofrendo pressões por parte da Comunidade Internacional, Israel estabeleceu um plano de retirada do Líbano, contudo teve de deixar o território antes do esperado.
O fato de Israel ter deixado o Líbano transformou-se num momento emblemático na história libanesa, tanto para muçulmanos quanto para cristãos, haja vista a luta pelo restabelecimento da soberania libanesa já era algo almejado pela população do país de maneira geral e não por apenas um segmento social. Assim, o Hezbollah, que era o principal grupo a fazer frente aos israelenses no sul do Líbano, teve sua imagem potencializada no Líbano e no mundo árabe tornando-se o único exército a vencer os israelenses, algo que nenhum Estado árabe havia conseguido até então.
Perante esse novo status assumido pelo Hezbollah é importante que o grupo – também partido político e guerrilha – seja visto através de perspectivas mais amplas. Isso porque, não se pode abstrair seu histórico xiita e sua ligação com o mundo árabe e muçulmano.
Retomando aos fatos que ora pontuam as primeiras páginas dos principais jornais do mundo devido à violência dos ataques israelenses, cabe perguntar se a mesma estratégia assumida contra a OLP teria efeito no Hezbollah. De antemão a resposta parece ser negativa. A OLP era uma organização estrangeira, que, apesar de ter ganho bastante espaço de atuação em território libanês, não contava com o real apoio da população, apenas servia como objeto de barganha durante o período da Guerra Civil. O apoio dado à OLP e aos palestinos, de modo geral, estava ligado a interesses dos atores externos ao conflito como Síria e EUA. Tanto é perceptível que a Síria em determinados momentos apoiou a OLP e em outros colocou seus exércitos contra ela no Líbano. O Hezbollah, apesar de servir aos interesses da Síria, sofria com a presença da OLP no sul do Líbano, tendo em vista que era alvo freqüente da artilharia israelense, assim, também alternou seu apoio à OLP de maneira mais pragmática.
É verdade que havia, como ainda há, questões em comum entre o Hezbollah, OLP, Hamas, Fatah e a al-Qaeda, e a principal delas é a luta aberta contra Israel. Entretanto, a ligação do Hezbollah com o Líbano tem de ser melhor apreciada considerando o fato de que não será a ação militar de Israel que fará com que os xiitas deixem de acreditar em seus ideais ou abandonem seu próprio território. O Hezbollah não é a OLP e tampouco atua da mesma maneira. As ações do Hezbollah freqüentemente focam alvos militares, diferentemente das demais organizações citadas que buscam, através do terror provocado aos civis, alcançar seus objetivos. Entretanto, não é possível afirmar que o Hezbollah nunca tenha gerado a morte de civis.
Assim, partindo dessa premissa de que são organizações distintas na forma de atuar, é provável que mesmo que Israel destrua o Líbano com seus bombardeios, não conseguirá acabar com o Hezbollah, porque ele sobreviveu aos anos de guerra civil e à ocupação israelense de seu território e não será a destruição de suas bases, ou parte de seu arsenal, que diminuirá o ímpeto da organização. O que pode haver é uma mudança de estratégia de ação, ou seja, a utilização de atentados terroristas para compensar a impossibilidade de ataque de forma convencional.
Não é possível esquecer que no início dos anos de 1980 o Hezbollah ficou caracterizado pela eficiência de seus ataques contra os efetivos militares dos EUA, França e Israel. Ações que levaram os Estados Unidos a repensarem sua atuação no conflito e retirarem seu efetivo militar que fazia parte das tropas da ONU que atuavam no Líbano durante a Guerra Civil. Em 1983, apenas em uma ação do Hezbollah, formam mortos 241 militares estadunidenses que compunham as tropas da ONU. Em um atentando ao quartel militar nas proximidades do aeroporto internacional de Beirute, a explosão de um caminhão provocou uma mudança substancial no panorama da Guerra Civil. O Hezbollah mostrou que teria condições para lutar em outros campos que não o da guerra convencional, onde estava nitidamente inferiorizado.
Seguindo uma linha paralela de atuação, o Hezbollah servia para fazer frente à ocupação israelense e, ao mesmo tempo, buscar uma maior representatividade da comunidade xiita no panorama político libanês, em que havia a predominância dos maronitas e dos sunitas.
A presença dos xiitas à margem das decisões libanesas é fruto de acordos que remontam ao Pacto Nacional, que fora firmado entre os principais grupos religiosos libaneses e propiciou a independência do Líbano em 1943
[v]. Efetivamente, quem trabalhou em prol da construção de um sentimento nacional que levaria à independência foram os sunitas e maronitas. Assim, o poder político acabou permanecendo na mão desses dois grupos. Segundo a divisão estabelecida por eles, a presidência da república seria de competência de um cristão maronita e o cargo de primeiro-ministro caberia a um muçulmano sunita. Posteriormente os xiitas conseguiram o direito de nomearem o chefe do parlamento.
No tocante à representação política no parlamento, estabeleceu-se a fórmula de 6:5 em favor dos cristãos. Isso com base no Censo realizado em 1932 e que mostrava uma ligeira maioria cristã de 52% contra 48% de muçulmanos. Os cargos na burocracia libanesa também deveriam seguir essa proporção, contudo, logo percebeu-se que tal fórmula não seria seguida à risca e o sectarismo prevaleceria nas relações políticas.
Os privilégios dos maronitas geraram tensões junto aos demais grupos religiosos o que desencadeou a Primeira Guerra Civil em 1958. Ela teve alcance reduzido e contou com interferência militar estadunidense para que não se alastrasse por todo o país.
Um fato que chama a atenção da trajetória libanesa é que o consenso sempre fora construído com a interferência externa, ou seja, servia apenas para resolver problemas momentâneos mas que voltavam a ressurgir posteriormente. Nesse caso, em 1958 não houve qualquer arranjo político para que os xiitas obtivessem uma maior representatividade no Estado, tampouco o sectarismo maronita deixou de existir.
Nesse panorama de desentendimentos, a Segunda Guerra Civil, que teve início em 1975, ocorreu potencializada e com a presença de um ator agora influente, a OLP. O campo de batalha que foi criado no Líbano servia para resolver os problemas internos de seus nacionais e as questões que pontuavam no Oriente Médio. Assim, temos a entrada da Síria no conflito em 1976, de Israel em 1978 e do Irã, indiretamente, a partir de 1979.
Os Estados Unidos procuravam defender seus interesses geopolíticos na região utilizando-se, algumas vezes do Estado de Israel e, em outras, participando das forças de paz da ONU. Entretanto, com a presença efetiva do Hezbollah no conflito, a guerra teve de ser repensada, haja vista seu poder destruidor ser inesperado.
Apesar de o Líbano ter sido praticamente destruído nos quinze anos que a guerra civil se prolongou, um fato merece atenção: o enfraquecimento do Estado proporcionou com que o Hezbollah assumisse suas funções em diversas localidades no Líbano. Isso ocorreu por várias razões, mas principalmente porque os dirigentes políticos libaneses nunca se preocuparam com a camada mais pobre da população e continuaram governando em prol de interesses regionais, ou seja, para a sua comunidade ou aquela que lhe dava apoio político.
Assim, diante de uma situação adversa para a comunidade xiita, o Hezbollah assumiu as funções do Estado e, contando com o apoio financeiro do Irã, conseguiu criar uma extensa rede de comunicação, saúde, educação e religiosa. Nas localidades mais distantes do Líbano, onde o governo não chegava, o Hezbollah construía suas estruturas. Por isso, o sul do Líbano e o Vale do Bekaa são os locais onde contam com a maior estrutura do Hezbollah. Também nos subúrbios xiitas de Beirute encontra-se a rede de assistência do Hezbollah. Porém, essa rede de assistência não é exclusividade da comunidade xiita, libaneses de outras religiões também a utilizam.
De certa forma, a própria estrutura política libanesa e suas deformações fizeram com que o Hezbollah ganhasse mais notoriedade. Esse fato foi referendado quando, em 2000, Israel deixou o sul do Líbano. Ali, a organização xiita já contava com o apoio bem maior que simplesmente de seu segmento religioso, o Hezbollah carregava o desejo de liberdade do povo libanês.
A etapa posterior foi de grande importância para que o Hezbollah provasse sua institucionalidade, até porque, após 1990 o que era apenas um grupo de guerrilha também se transformou num partido político. Se não mais havia o Estado de Israel ocupando o território libanês, então o Hezbollah deveria seguir o que designava o Acordo de Taif
[vi] e depor as armas, como fizeram as demais milícias após o final da Segunda Guerra Civil, entretanto, uma nova questão interpôs-se a esse fato: segundo o Hezbollah, Israel ainda ocupava uma área conhecida como Shebaa Farms – região localizada entre Líbano, Síria e Israel. Contudo, de acordo com os israelenses, tal região foi conquistada junto à Síria na mesma ocasião em que também obtivera as Colinas de Golã. A Síria não reconhece a região como sendo sua, mas, sim, libanesa.
Ao utilizar esse recurso questionável para não depor as armas, uma vez que a ONU já concluíra que Israel deixara o território libanês, o Hezbollah lançou mão desse artifício para que a manutenção de seu exército não colidisse com os interesses do partido político e do Estado libanês. Dessa forma, a milícia xiita preservou seu poderio de fogo para poder negociar outras questões em âmbito local e regional.
Como a estrutura política libanesa faz com que a comunidade muçulmana seja preterida e os governantes não conseguem encontrar uma fórmula que equilibre essa perda sem fazer com que seus grupos tenham o poder de decisão e econômico reduzidos – mesmo sendo minoria no país – o Hezbollah é aceito como uma forma de compensação. Se os xiitas não têm os mesmos benefícios que os demais cidadãos libaneses e o Hezbollah os compensa – mas para isso mantém uma milícia –, é mais vantajoso o governo maronita aceitar esse fato que assumir tais responsabilidades.
Assim, o Hezbollah tem certo aval para atuar no Líbano como partido político e como milícia. Esse fato também não era tão questionado antes da saída das tropas sírias do Líbano em 2005. Isso porque não havia liberdade de imprensa para se fazer tal questionamento e o Hezbollah servia aos interesses diretos do governo sírio, uma vez que preservava tensa a região entre sua fronteira com Israel.
Uma análise do sistema político libanês a partir de qualquer modelo analítico de democracia poderia nos indicar que o país não vivia uma real democracia devido à restrição de liberdade do povo e a equação montada para representar os diversos grupos religiosos existentes no país, tanto no Executivo quanto no Legislativo. Talvez, diferentemente do que se apregoava na imprensa internacional, o Líbano não vivia um estado de democracia plena, mas sim um regime liberal.
Já tornara perceptível que, com a saída da Síria do território libanês, o país estava conseguindo alcançar maior autonomia e gradualmente viria a questionar a presença do Hezbollah como milícia no país. Mas antes de partir para uma ofensiva contra o Hezbollah, o governo teria de buscar o equilíbrio entre os grupos religiosos. Criar compensações para que a população libanesa clamasse pela desmilitarização da organização, da mesma forma que o movimento contra a presença Síria no Líbano ganhou as ruas. O Hezbollah deveria perder a legitimidade de atuação junto à comunidade libanesa para que fosse questionado.
Não havia condições políticas para que o governo maronita se posicionasse contra o Hezbollah sem que isso reavivasse os mesmos sentimentos que levaram à Segunda Guerra Civil. Por isso havia a tolerância.
Quando Israel resolveu atacar o Líbano e culpá-lo por aceitar a presença do Hezbollah (como milícia) em seu território, nada mais fez que colocá-lo em xeque diante da situação mais tênue que o governo vivia. O equilíbrio que vinha sendo buscado há anos foi perdido.
O governo libanês foi obrigado a não posicionar-se enfaticamente contra o Hezbollah e assim abriu caminho para que Israel continuasse a destruir o Líbano. Porque torna-se evidente que não é possível destruir as bases do Hezbollah e sua estrutura sem fazer o mesmo com o país.
Quando o governo israelense alega que não efetuou uma reação desproporcional contra o Hezbollah e utiliza como argumento de defesa o fato de haver um risco crescente, nada mais está fazendo que retornando à teoria de Bush da Guerra Preventiva. Destruir o inimigo antes que ele tenha possibilidade de fazer o mesmo contra mim. O problema é que não se pode afirmar, de fato, que tal situação pudesse vir a acontecer. A Guerra Preventiva de Bush contra o Iraque comprovou que não havia o risco real que o governo estadunidense apregoava. Hoje o país está cindido e as perspectivas não são as melhores.
Fazer um prognóstico sobre o que pode vir a acontecer no futuro próximo é um exercício difícil, mas dois cenários sobressaem aos demais nesse momento: em um primeiro pode-se esperar o avanço das tropas israelenses sobre o território libanês e a ampliação da destruição do país. O governo libanês já posicionou-se contra a estratégia israelense e ameaçou colocar seus exércitos para defender o país. Uma atitude retórica, haja vista o exército libanês ser inferior ao potencial do Hezbollah. Preservaria a unidade do Estado mas não reduziria sua destruição.
Num segundo cenário, caso o governo libanês acate as reivindicações de Israel e inicie uma campanha contra o Hezbollah, corre-se o risco de iniciar uma Terceira Guerra Civil. Novamente teríamos cristãos contra muçulmanos e esses contra israelenses. Abriria o caminho para que outros atores participassem da guerra de maneira indireta, como ocorreu em outras oportunidades. A população libanesa acabaria refém dos problemas que circundam o Oriente Médio e que encontrariam campo fértil para serem resolvidos em seu solo.
Ainda, não é possível deixar de considerar a importância de dois outros atores nesse conflito: Síria e Irã. Para a Síria é primordial que o Hezbollah continue atuando como uma milícia no Líbano, assim poderá mantê-lo defendendo seus interesses frente a Israel sem precisar expor-se. Preservar o Hezbollah ao seu lado é fundamental para sua estratégia, uma vez que, apesar de a Síria ainda contar com aliados políticos no Líbano, não mais exerce o poder de influência que tinha até 2005.
Quanto ao Irã, além da ligação religiosa com o Hezbollah – o qual reconhece o Aiatolá Khamenei como sendo seu guia espiritual –, há a questão estratégica. O Hezbollah, desde sua criação, sempre foi o maior porta-voz da Revolução Islâmica e defende a criação de um estado islâmico no Líbano nos moldes do Irã
[vii]. Também apregoa a luta contra o Estado de Israel, visto pelos fundamentalistas islâmicos como o usurpador. Preservar uma milícia xiita que conseguiu afrontar os israelenses é de fundamental importância para a difusão da proposta fundamentalista, além do que, enquanto a discussão estiver focada no Hezbollah, o Irã deixa de estar sob a mira dos Estados Unidos e pode desenvolver seus experimentos nucleares com mais tranqüilidade.
O que se pode apreender desse conflito é que a situação no Oriente Médio somente tende a piorar com a demora na resolução do desentendimento entre Líbano e Israel. Mais civis morrerão nos dois países e dificilmente o Hezbollah aceitará depor as armas. O ideal seria partir para a negociação em outras bases, contudo, talvez os israelenses entendam qualquer tentativa de diálogo como um recuo, uma derrota e a situação do primeiro-ministro Ehud Olmert venha a ficar fragilizada, isso porque, ele não conta com um histórico militar favorável, como Sharon o tinha.
Há de se lamentar a destruição que esse conflito está gerando, principalmente porque o Líbano encontrava-se numa trajetória ascendente em busca de um sentimento nacional – como foi possível perceber nos protestos de 2005 que levaram a Síria a deixar o país – e esse processo teria repercussão direta no estabelecimento de um equilíbrio entre os grupos religiosos. Um processo que poderia fazer com que o Estado libanês criasse mecanismos para assumir suas obrigações perante todos os nacionais e, assim, limitasse a participação social do Hezbollah.
Com o retorno dos conflitos, os Acordos Paris I e Paris II, que injetaram capital no Líbano para que fossem feitas as Reformas Econômicas e sanasse os problemas libaneses, abaram se perdendo. Se havia a perspectiva de que, juntamente com a Reforma Econômica, viesse uma Reforma Política e dirimisse os problemas do país no tocante a corrupção, perpetuação no poder, etc, por ora parece impossível de serem restabelecidas.
O Líbano, que seguia rumo ao futuro, foi catapultado aos seus mais tristes momentos do passado. Momentos esses que tendem a se repetir constantemente na história libanesa, numa trajetória cíclica. Lamentavelmente, a única opção que o Líbano terá após a destruição de seu país cessar será retornar de volta para o futuro.

*Bacharel em Relações Internacionais (FASM/SP) e Mestrando em História (FFLCH/USP).
E-mail: renatho_costa@hotmail.com

[i] Em 2 de novembro de 1969, a assinatura do Acordo do Cairo promovido por Gamal Abdel Nasser, onde o governo libanês regulamentava relações oficiais com a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) para que ela promovesse um cessar-fogo com Israel, na verdade representou “in effect ceded Lebanese sovereignty in parts of south Lebanon to the PLO to carry on its war of liberation.” (McDOWALL, 1986: p. 14) e gerou mais problemas internos que Charles Helou, presidente do Líbano, poderia ter previsto.
[ii] Dentre as várias milícias que atuavam no Líbano durante o período da Guerra Civil (1975-90), a Falange alcançou bastante destaque devido ao seu poderio e apoio recebido pelos israelenses. Essa milícia era dirigida pela família Gemayel.
[iii] “Nenhum israelense foi diretamente responsável pelos eventos ocorridos nos campos [Sabra e Shatila]. Mas a Comissão afirmou que Israel teve responsabilidade indireta pelo massacre desde que a IDF [Israel Defense Force – Força de Defesa de Israel] ocupava a área, Sr. Begin [Menachen Begin, primeiro-ministro israelense à época] foi apontado responsável por não exercer grande envolvimento e ter consciência no assunto relativo à entrada dos falangistas nos campos. Sr. Sharon foi apontado responsável por ignorar o perigo do derramamento de sangue e vingança quando aprovou a entrada dos falangistas nos campos assim como por não ter tomado as medidas apropriadas para prevenir o derramamento de sangue.” (COMISSÃO KAHAN, 1983).
[iv] SLA (South Lebanon Army – Exército do Sul do Líbano).
[v] O Líbano ficou sob Mandato francês a partir de 1920, quando houve a Conferência de San Remo e ratificou-se o que já havia sido acordado entre as Potências da época – Inglaterra e França – no acordo secreto de Sykes-Picot (1916). Ainda, em 1923 a Liga das Nações referendou o sistema de mandatos e atribuiu à França o direito sob a Síria e o Líbano. Assim, o mundo árabe foi redividido e reestruturado sob à falência do Império Otomano, que saíra derrotado na Primeira Guerra Mundial.
[vi] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa –parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa, excluindo o sectariasmo e dirimindo as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa. Esse último item acabou ficando prejudicado, haja vista que Israel, somente, deixou o sul do Líbano em 2000 e a Síria em 2005. Nem todas as milícias depuseram as armas.
[vii] É certo que esse projeto não é bem visto pela população libanesa de maneira uniforme – principalmente pelos cristãos – e, devido ao pragmatismo do Hezbollah, o discurso vem sendo moldado para que essa proposta seja um modelo ideal a ser alcançado, contudo, não estabelecido no atual momento. Por isso o Hezbollah participa do processo eleitoral e aceita a secularização do estado – pelo menos temporariamente.