Sunday, June 03, 2007

HIZBULLAH - QUANDO DEUS TEM DE ESCOLHER SEUS CORRELIGIONÁRIOS

Renatho Costa*

Em 2005, com a saída das tropas sírias do Líbano – que lá permaneciam desde 1976 –, a situação política do Hizbullah pareceu que ficaria abalada devido à perda do prestígio que lhe era atribuído pelo forte aliado. Com o Ocidente atento às ações do governo de Bashir al-Assad, a Síria parecia estar com seus dias contados – no que tange à interferência na política libanesa –, no entanto não foi exatamente esse cenário que prosperou.
Com a eleição parlamentar de 2005, apesar da vitória dos opositores da presença síria no Líbano, o Hizbullah conseguiu eleger mais parlamentares que em qualquer outra eleição. Fato esse que possibilitou sua participação no gabinete do Primeiro-ministro Fouad Siniora – contrário à presença síria no Líbano.
Assim, a análise mais viável era de que o Hizbullah seguiria a mesma trajetória de vários outros partidos políticos ocidentais que, diante do crescimento de sua base de apoio e reconhecimento de sua representatividade pelo Estado, ampliaria ainda mais sua participação no Parlamento. Exceto pelo fato de que, segundo o acerto político que vigora no Líbano desde sua independência (1943)
[1], cada grupo religioso teria direito a determinado número fixo de representantes no Parlamento, impossibilitando, com isso, a ampliação do número pré-estabelecido para os xiitas.
Em 1990, com a assinatura do Acordo de Taif, que colocou fim à Guerra Civil (1975-90), a participação dos muçulmanos foi equiparada a dos cristãos, assim, cada um passou a ter o direito de eleger 50% dos membros do Parlamento. Essa proporção também deveria expandir-se para a administração pública.
Um dos primeiros equívocos foi de que, apesar de ter havia a equiparação do número de representantes no Parlamento entre muçulmanos e cristãos, a realidade não mais se apresentava dessa maneira. Há muito tempo os muçulmanos já haviam superado o número de cristãos no país e, dentre os muçulmanos, o grupo dos xiitas era o que mais crescera. Então, ainda que tivesse havido um ganho político substancial para os muçulmanos, a sensação de sub-representatividade ainda perdurava, especialmente se levado em consideração que no âmbito sócio-econômico não ocorreu melhoras para os xiitas.
Assim, retomando aos acontecimentos de 2005, a vitória do Hizbullah sugeria um cenário em que o partido xiita estaria galgando mais poder, no entanto, com um limite que não poderia ser transposto e que, por sua vez, preservaria a característica confessional do regime político em vigor no país. Com o Hizbullah sem o efetivo apoio político-militar da Síria, talvez, o melhor caminho a seguir fosse trilhar sua trajetória dentro dos padrões democráticos ocidentais que gradativamente vinha sendo assimilado pelo partido, o qual outrora abraçava o ideal islamista e não abria concessões para a flexibilização de seu projeto.
Assentado na estrutura política libanesa, o Hizbullah continuou criticando as concessões que o governo libanês de Siniora fazia ao Ocidente e, reiterou a defesa do estreitamento de relações com o governo sírio. Por determinado período, as colocações que muitos analistas – como Martin Kramer – faziam acerca de o Hizbullah intencionar inserir-se no sistema político libanês para, quando obtivesse condições favoráveis, passar a implementar sua política islamista, tornou-se mera “teoria conspiratória”. Em muitos aspectos, o Hizbullah dava a entender que seu pragmatismo superara o islamismo. A milícia que nascera para defender a soberania do Estado libanês, e, por sua vez, passou a ser considerada terrorista pelo Ocidente, por força de seu pragmatismo galgou o status de partido político e agora se encontrava dentre os maiores e mais poderosos do Líbano – com uma estrutura que rivalizava o poderio do Estado.
Nunca fora possível aventar a possibilidade de que uma organização xiita islamista, como o Hizbullah, fosse capaz de fazer tantas concessões para poder participar da política libanesa e aceitar seus pressupostos – contrários ao projeto islamista que sempre fora defendido pela organização desde seus primórdios, no início dos anos de 1980. Mas o Hizbullah sobreviveu à Guerra Civil, às invasões israelenses e à saída síria do país. Continuou admirando o modelo político-religioso iraniano, mas criou mecanismos que o transformou num organismo político independente, e não um mero satélite do governo dos aiatolás, ou mesmo da Casa dos Assad.
No entanto, quando tudo parecia seguir o rumo da comunhão de interesses e, pela primeira vez houvera o surgimento de um “sentimento nacional libanês”
[2], um atrito, em meados de 2006, entre Hizbullah e o exército israelense, mudou o panorama do jogo interno e externo no Líbano e repercutiu em todo o Oriente Médio.
Apesar de Israel ter se retirado do território libanês em 2000, a região fronteiriça entre os dois países manteve a tensão. Os territórios continuavam sendo violados com freqüência pelos dois lados e, por essa razão, o Hizbullah já seqüestrara membros do exército israelense para servir de barganha por prisioneiros seus. Contudo, em julho de 2006, após uma ação do Hizbullah que resultou na morte três militares israelenses e seqüestro de dois soldados, o governo de Israel não aceitou negociar. Exigiu a devolução de seus soldados sem qualquer contrapartida.
A recusa do Hizbullah possibilitou a Israel invadir o Líbano e destruir completamente o sul do país, além de grande parte da infra-estrutura de outras regiões. O país sofreu um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo. Em pouco mais de 30 dias houve a destruição do país e o objetivo de Israel acabou não sendo alcançado: o Hizbullah não foi destruído e seus soldados não foram devolvidos.
A partir do cessar fogo estabelecido e, mesmo diante do fato de o Hizbullah ter sofrido baixas substanciais, a milícia (e partido político) xiita, não esmoreceu. Como fora a única força militar que se posicionou contra os ataques israelenses, acabou ganhando apoio de vários outros segmentos religiosos do país.
Findado o conflito, Israel, pelo menos num primeiro momento, saiu-se caracterizado como um péssimo estrategista. A vitória moral do Hizbullah abriu caminho para que seus questionamentos ganhassem mais força. Externamente o Hizbullah – que já era idealizado pelas organizações islamistas devido a seu sucesso obtido com a expulsão de Israel de território libanês em 2000 –, conseguiu tornar-se uma unanimidade. Pela segunda vez em sua história conseguiu impor a derrota aos israelenses
[3].
A partir daquele momento passamos a ver um novo Hizbullah, ou talvez um antigo. Segundo Nasrallah, secretário-geral do partido, o projeto para o Líbano sempre foi o de estabelecer, ali, uma República Islâmica aos moldes do Irã, contudo, como ele mesmo afirmara, a conjuntura não permitia a implementação de tal projeto, assim, o Hizbullah se moldara às condições políticas mais viáveis.
Com o grande apoio alcançado pelo Hizbullah, seus representantes passaram a questionar a predominância de partidários “pró-Ocidente” no governo, sendo que eles não lutaram contra Israel. O governo de Siniora passou a sofrer grande pressão por parte do Hizbullah para renunciar e abrir caminho para uma nova eleição – em tese, que referendaria a vitória do partido xiita.
Com o apoio do Ocidente, Siniora não renuncia e tenta encontrar uma maneira para que a perda política não seja tão devastadora. O Hizbullah, ao retirar seus membros do Gabinete – uma vez que não foi aceita sua proposta de ampliar sua participação no mesmo, passando a ter oito representantes –, abriu caminho para a discussão de questões há muito tempo “engavetadas”, dentre elas: a sub-representatividade política da comunidade muçulmana.
Rever esse equilíbrio de poderes sempre foi um tema muito delicado. Os cristãos, de certa forma, aceitavam a manutenção do Hizbullah como um partido político e milícia, desde que não houvesse o questionamento explícito de sua preponderância política. E, concomitantemente, os xiitas do Hizbullah tinham a liberdade de “governar” nas regiões de predominância xiita, sem interferência direta do Estado. No entanto, a vitória moral do Hizbullah e a ampliação de sua base de apoio possibilitaram que seus membros entrassem no mérito da questão relativa à participação xiita no governo.
Hoje, como em 1975, o Líbano encontra-se dividido em dois grupos: os partidários do Hizbullah – com apoio do cristão Michel Aoun, alguns drusos e da Síria – e o “Grupo 14 de Março”, que congrega vários grupos religiosos que são contra a presença síria e dão apoio ao Primeiro-ministro Siniora.
Em 1975, a questão relativa ao sectarismo levou o país à guerra civil e, por conseguinte, à destruição. Naquele momento tínhamos a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) instalada no Líbano, e que provocou a invasão do mesmo por Israel em 1978 e 1982. Os grupos religiosos libaneses também se dividiram – no que tange ao apoio aos palestinos –, e esse fato acabou gerando o agravamento do conflito.
Em 2007 temos um Hizbullah pleiteando maior representatividade no poder e o risco de que seu discurso islamista possa ser colocado em prática se o governo de Siniora resignar-se. Por outro lado, os questionamentos do Hizbullah acerca de uma maior participação muçulmana no governo são condizentes com o atual perfil do país. Cabe saber se será possível encontrar uma nova fórmula que contemple aos interesses de todos os envolvidos.
Parece que, indiretamente, Israel, ao invés de derrotar o Hizbullah, potencializou a organização. Ainda abriu a possibilidade para que ela mostre sua real face, ou seja, se, de fato, se transformou num partido político – aos moldes do Ocidente – ou, se o pragmatismo tão constante nas relações entre o Hizbullah e os demais atores nacionais e internacionais somente foi necessário para chegar a esse momento e que, a partir de agora será implantado seu programa islamista.
Também, esse é o momento de saber como seria a estrutura desse novo governo proposto pelo Hizbullah, caso ainda mantenha uma proposta conciliadora. Se, por ventura, o Hizbullah conseguir chegar a um acordo satisfatório que não gere uma nova guerra civil, ainda assim caberá a pergunta: como será um governo em que o Hizbullah tenha direito de veto? O mais importante será saber quem “Deus escolherá para ter como correligionário em seu partido”, porque se a exclusão for muito grande, o próximo governo estará fadado ao fracasso, assim como o de Siniora.Ceder é um ato bastante perigoso nesse momento, haja vista o Hizbullah estar numa posição privilegiada na negociação; no entanto, se o impasse continuar, o país caminhará lentamente a um estágio de insustentabilidade. E, como a história libanesa mostra, depois de iniciado um conflito, muitos atores externos quererão entrar na arena para tirar vantagens. Assim, o único que sai destruído é o Líbano, incansável no processo de reconstrução.

BIBLIOGRAFIA

Byman, Daniel. “Hezbollah’s Dilemma”. In Foreign Affairs, 13/04/2005. Disponível em: www.foreignaffairs.org.
Demant, Peter. Islam vs Islamism: The Dilemma of the Muslim World. Westport: Praeger Publishers, 2006.
Harik, Judith Palmer. Hizbullah, the changing face of terrorism. Londres: I. B. Tauris, 2004.
Jaber, Hala. Hezbollah, born with a vengeance. New York: Columbia University Press, 1997.
Mallat, Chibli. “Aspects of Shi’I thought from the South Lebanon: Al-‘Irfan, Muhammad Jawad Mughniyya, Muhammad Mahdi Shamseddin, Muhammad Husain Fadlallah” In: Papers on Lebanon, number 7. Centre for Lebanese Studies.Quilty, Jim. “Winter of Lebanon’s Discontents”. In: Middle East Report Online, 26/01/2007. Disponível em:
www.merip.org.



Notas:
* Doutorando em História Social (USP), Mestre em História Social (USP) e Bacharel em Relações Internacionais (FASM-SP).
[1] Nessa ocasião o acordo estabeleceu que a representatividade entre cristãos e muçulmanos seria da ordem de 6 para 5 – em favor dos primeiros. Esse acordo ficou conhecido como Pacto Nacional, no entanto, não foi um documento formal e assinado pelas partes, apenas reconhecido verbalmente.
[2] Durante as manifestações que se seguiram à morte do Primeiro-ministro Rafiq Hariri, no início de 2005, e que levaram a Síria a deixar o Líbano, o que se via nas ruas era o clamor pela “independência”. Independentemente de haver partidários da manutenção dos exércitos sírios no país, em todas as manifestações era possível perceber a presença da bandeira libanesa acima das demais. Um sentimento nacional possibilitou que se vislumbrasse o surgimento de um real “estado-nação”.
[3] Evidentemente que essa vitória deve ser considerada apenas no panorama político, haja vista ter havido a destruição de grande parte do arsenal do Hizbullah e sua perda humana ser muito superior à israelense. Em números gerais houve a morte de mais de 1600 libaneses, dentre eles, apenas 10% faziam parte da milícia. No entanto, o número de desabrigado ultrapassa a cifra 200.000.

Tuesday, March 06, 2007

HIZBULLAH À MESA: ROYAL STRAIGHT FLUSH À VISTA?





de Renatho Costa*

Publicado em Revista Espaço Acadêmico - nº 70 - Março/2007 - Ano VI
ISSN 1519.6186
Disponível em: www.espacoacademico.com.br/070/70costa.htm

Quem dá as cartas no jogo Hizbullah-Israel? A trajetória desses dois atores vem proporcionando jogadas bastante elaboradas, muitas vezes, sem que se consiga entender exatamente qual é o objetivo do jogador. Um desses lances, bem elaborado... e estranho, se deu em julho último. Depois de um atrito de fronteira entre a milícia xiita libanesa (Hizbullah) e soldados israelenses, o Estado de Israel resolveu fazer uma jogada que poderia desestruturar seu adversário e, quem sabe, até a mesa.
Para entender a relação entre Hizbullah e Israel não é possível ater-se somente às questões religiosas, políticas ou econômicas. Tal é a quantidade de fatores que orbitam esses atores que, somente ampliando o raio de análise será possível entender melhor a razão para que o conflito não chegue ao fim.
Assim, esses atores vêm prolongando a partida, blefando e usando todos os recursos necessários para que o fim signifique a impossibilidade de o adversário retornar à mesa, ou seja, para que um vença e o outro perca tudo: um “jogo de soma zero”. E, talvez, o “perder tudo” não esteja sendo utilizado de maneira figurada, somente com a aniquilação da outra parte o jogo será concluído.
Outro aspecto interessante é o fato de que a mesa aonde o jogo se desenvolve continua a atrair muitos espectadores. Talvez o termo espectador não caiba nesse contexto, haja vista, serem muito mais que passivos observadores. Alguns torcem pela vitória de um dos atores por questões políticas, outros, por questões ideológicas, temos ainda aqueles que se alinham religiosamente à causa, por fim, também há os que apenas querem utilizar o jogo para obter vantagens colaterais.
De fato, mesmo quando o jogo principal entre Hizbullah e Israel tem uma trégua estratégica, os demais espectadores acabam assumindo outros papéis no intuito de conseguir as vantagens que buscavam ou, quiçá, recolher os louros da vitória com as apostas que fizeram na última rodadas de cartas que foi jogada.
O mais interessante nesse jogo não é saber quem irá ganhar, uma vez que, como se pressupõem, o final está muito distante porque não advirá apenas com a derrota momentânea do adversário, mas sim com seu compromisso de que não voltará à mesa nunca mais, e isso dificilmente acontecerá. A partida entre esse dois atores é longa e marcada pelas revanches. Perder hoje é apenas o resultado de uma mão de cartas mal dada... E sempre haverá quem empreste uma ficha para que o jogo não termine.
Então, entender o conflito entre Hizbullah e Israel não é o mais importante se o objetivo for conhecer os atores, para isso, deve-se observar como esses espectadores do jogo influem na partida. E mais, saber até onde poderão estender essa influência.

UM CENÁRIO INÓSPITO
Desde o início da década de 1980 o cenário internacional passou a conhecer o Hizbullah. O Líbano encontrava-se numa Guerra Civil que iniciara em 1975 e que já havia dizimado o país. A população xiita – que não era tratada como os demais cidadãos libaneses, sendo subjugada e vivendo em condições políticas, sociais e econômicas muito inferiores –, gradualmente foi se desprendendo do Estado e estreitando suas relações com as organizações que supriam suas necessidades. Primeiramente tivemos o Amal, depois, com a secularização dessa organização, houve a ascensão do Hizbullah.
Assim, o Hizbullah passou a atender grande parte das necessidades da população xiita libanesa. Criou escolas, hospitais, consultórios odontológicos, faculdade, mesquitas, etc. Cada vez mais cumpria os deveres do Estado e, num momento ímpar, quando a Guerra Civil colocava em xeque a autoridade central do país – desempenhada por cristãos maronitas – a ligação da população com o Hizbullah acabou se intensificando.
Como a Guerra Civil pode ser entendida como o resultado de uma demanda da população xiita – e mesmo de outros grupos excluídos do poder, como sunitas e drusos – por uma maior participação nos desígnios do Estado e fim do sectarismo político, é bem provável que o Hizbullah surgisse para atender os anseios de sua comunidade. No entanto, esse momento foi precipitado pela presença do Estado de Israel no conflito libanês.
Em 1978 os israelenses invadiram o Líbano no intuito de frear as atividades militares da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), porém, foi em 1982 que o exército de Israel invadiu o país, marchou até Beirute, expulsou a OLP e, ao retornar, acabou criando a “Zona de Segurança” numa faixa que abrangia 10% do território libanês.
Logo no início dos anos de 1980, ainda sem a formalização do Hizbullah, outras organizações menores – que futuramente viriam a integrar-se ao Hizbullah – programaram grandes atentados com “homens-bomba” contra alvos estadunidenses, franceses e israelenses.
Essas ações mudaram o rumo da história libanesa. A luta numa guerra convencional facilmente seria vencida por Israel, ou mesmo pelos Estados Unidos, entretanto, frustrados com a derrota no Vietnã, o governo norte-americano, após o atentado ao seu quartel em Beirute, optou por retirar suas tropas do Líbano antes que fosse tarde demais.
A grande falha dos Estados Unidos foi ter permanecido no Líbano após a retirada dos milicianos da OLP. No intuito de impedir que a Guerra Civil se alastrasse ainda mais pelo país e se tornasse mais sangrenta do que já era; cada vez mais o exército norte-americano foi se alinhando aos israelenses e maronitas, contra muçulmanos e drusos. A retaliação não demorou e, em 1983, 241 militares foram vitimados com a explosão de um caminhão-bomba em frente ao quartel general dos marines. (JABER, 1997)
Nesse panorama, em 1985, o Hizbullah divulga sua Carta Aberta, na qual fazia uma opção fundamentalmente estratégica ao escolher o inimigo comum de grande parte dos muçulmanos (o Estado de Israel) para ser alvo de sua luta, ante mesmo a direcionar suas forças na solução das questões internas libanesas. O Hizbullah continuava envolvido na Guerra Civil, entretanto, ao optar por travar sua lutar contra a existência de Israel, conforme a Carta Aberta explicitava,

A Necessidade de Destruição de Israel[1]
Nós vemos em Israel a linha de frente dos Estados Unidos em nosso mundo islâmico. É um inimigo odiado que deve ser combatido até que os demais, também odiados, tenham o que merecem. Esse inimigo é o maior perigo para nossas futuras gerações e para o destino de nossas terras, particularmente porque ele glorifica as idéias de assentamentos e expansão. Iniciadas na Palestina e ansiando expandir até a extensão da Grande Israel, do Eufrates ao Nilo.
Nossa primeira hipótese em nossa luta contra o Estado de Israel é que a entidade Sionista é agressiva em sua acepção e constrói em terras retiradas de seus donos, ao custo dos direitos do povo muçulmano. Portanto, nossa luta só terminará quando essa entidade for eliminada. Nós não reconhecemos nenhum acordo com ele [Israel], nenhum cessar fogo e nenhum acordo de paz, seja em separado ou consolidado.
Nós, vigorosamente, condenamos todos os planos de negociação com Israel e consideramos todos os negociadores como inimigos, pela simples razão de que cada negociação é nada menos que o reconhecimento da legitimidade da ocupação Sionista da Palestina. Portanto, nós nos opusemos e rejeitamos os Acordos de Camp David, as propostas do Rei Fahd, o Plano Fez e Reagan, as propostas de Brezhnev e franco-egípcia, e todos os outros programas que incluem o reconhecimento (mesmo o reconhecimento implícito) da entidade Sionista.


conseguia contar com o apoio de grande parte do mundo muçulmano e dos palestinos; abrindo possibilidades, inclusive, para receber apoio financeiro de outros Estados muçulmanos que não somente Irã e Síria, que desde o início dos movimentos xiitas apoiaram o Hizbullah contra o Estado de Israel.
Apesar de a Guerra Civil ter chegado ao fim em 1990, com o Acordo de Taif[2], a relação entre Hizbullah e Israel não sofreu alteração, haja vista os israelenses terem permanecido em território libanês até 2000. Outro fato de grande importância, e ligado ao ano de 1990, diz respeito à transformação do Hizbullah de milícia em partido político. A partir dessa data, de certa forma, o Estado libanês legitimou a luta do Hizbullah contra Israel e deu-lhe um valor institucional. Essa questão seria bastante atacada por Israel durante sua última invasão em julho último, isso porque, se o Hizbullah encontra amparo e reconhecimento dentro do Estado libanês, segundo o entendimento dos israelenses, deveria responder por suas ações também.
O final da Guerra Civil também trouxe algumas mudanças no panorama político libanês, no entanto, não atendeu, em sua plenitude, à demanda da população muçulmana. A participação dos muçulmanos nos cargos eletivos e na administração pública, que atendia a proporção de 6 para 5 em prol dos cristãos[3], foi alterada para 50% para cada grupo religioso, ou seja, participação igualitária, porém, já em 1990 a população muçulmana era superior à cristã. Os poderes do presidente (cargo exercido exclusivamente por cristãos maronitas) foram diluídos dentre os membros do Gabinete, Primeiro-ministro e Chefe do Parlamento – esses dois últimos, cargos reservados aos sunitas e xiitas, respectivamente.
Um item que constava no Acordo de Taif, no entanto não foi cumprido em sua plenitude, diz respeito à deposição de armas por parte das milícias que dominavam o país durante o período da Guerra Civil. Com a pressão do governo sírio e total apoio dos Estados Unidos – que pretendiam isolar o Iraque, por isso deram apoio ao plano de paz implementado pelo governo sírio e outras autoridades do mundo árabe –, todos os grupos que faziam oposição ao Acordo de Taif foram obrigados a capitular ou deixar o país. Exceção feita ao Hizbullah, que conseguiu obter o aval do governo sírio para continuar lutando pela soberania do Estado libanês.

UMA JOGADA ARROJADA
Como partido político, o Hizbullah conseguiu ampliar sua zona de atuação e obter prestígio perante a população xiita, contudo, não podia ampliar sua participação no cenário político devido à legislação eleitoral que determina qual a participação de cada grupo religioso no Legislativo. Assim, a disputa do Hizbullah dava-se (e ainda se dá) com o Amal, outra grande força política xiita libanesa.
Nas eleições de 1992 e 1996 o Hizbullah conseguiu obter grande êxito, mas não maior que o pleito eleitoral de 2000, quando ainda usufruiu dos louros da vitória obtida sobre o Estado de Israel, o qual havia sido derrotado e expulso do Líbano pelos milicianos do Hizbullah.
Ao contrário do procedimento que pautava a relação entre os grupos religiosos durante a Guerra Civil, quando o Hizbullah recuperou os territórios do sul do Líbano, sua postura não foi retaliar a população dos enclaves cristãos que apoiaram os israelenses, ou mesmo executar os membros da milícia maronita SLA (South Lebanon Army – Exército Libanês do Sul) – que dava suporte militar à ocupação israelense –, contrariamente, as autoridades do Hizbullah prenderam os apoiadores da ocupação e delegaram ao governo libanês julgá-los.
A partir de 2000 a legitimidade da luta do Hizbullah, que se apegava à necessidade de restaurar a soberania territorial do Líbano, também teve de ser revista e, cada vez mais latente se tornou o projeto da organização islamista que havia sido difundido em sua Carta Aberta. A luta com o Estado de Israel não mais poderia fundamentar-se na questão territorial, mas sim, contra o projeto sionista de criação da Grande Israel. Ao mesmo tempo, a questão da restauração da soberania do Líbano não foi resolvida completamente, os membros do Hizbullah alegavam que Israel ainda ocupava uma parcela do território libanês conhecido por Shebaa Farms.
À parte o questionamento acerca da propriedade do território – haja vista a ONU entender que Israel cumpriu a determinação de suas Resoluções e deixou o território libanês e, por sua vez, parcelas dos libaneses e sírios alegarem que Shebaa Farms sempre foi libanesa e que Israel a conquistou durante a Guerra dos Seis Dias (1967) –, o fator principal é que o Hizbullah conseguiu, mais uma vez, burlar o que fora assumido no Acordo de Taif e permaneceu armando. Segundo suas autoridades, enquanto não fosse reconquistada a soberania territorial libanesa, na sua totalidade, o Hizbullah não poderia depor as armas.
Nesse aspecto, o apoio do governo sírio à decisão do Hizbullah foi providencial. Para que a Síria continuasse tendo esperanças de reaver as Colinas de Golã – também perdidas durante a Guerra dos Seis Dias, para Israel –, seria necessário manter a tensão entre a milícia libanesa e Israel, assim, os sírios poderiam defender seus interesses indiretamente.
Com a manutenção do argumento de “restauração da soberania territorial”, ao mesmo tempo em que a credibilidade internacional perdera força, a vitória do Hizbullah sobre o exército israelense o elevou a uma categoria inesperada de único ator a ter conseguido vencer o Estado de Israel. E, com isso, conseguiu absorver o apoio de outros grupos religiosos libaneses.
A tendência natural seria o Hizbullah ampliar sua base de sustentação nas eleições de 2005, inclusive, superando seu maior adversário, o Amal. Para o crescimento do partido político Hizbullah, muito da maneira original com que uma organização islamista era vista deixou de constar no perfil do partido político xiita libanês. (HAMZEH, 2004)
Se, no programa do Hizbullah ainda consta a intenção de que o Líbano se transforme num Estado islâmico, as declarações de seu Secretário-geral, Sayyed Hassan Nashallah, demonstram que já houve sua flexibilização. Cada vez mais Nashallah assume o discurso de que o modelo ideal para o Líbano continua sendo o iraniano, contudo, esse é um projeto que se encontra distante da realidade libanesa.
O segundo passo na direção contrária do islamismo puro se deu quando o Hizbullah aceitou fazer parte do Gabinete do Primeiro-ministro Fouad Siniora. Após o resultado das eleições de 2005 o Hizbullah conseguiu ampliar sua participação no Parlamento e, também, assumiu duas pastas no Gabinete (Ministério da Energia e Água, com Mohamad Fneich; e, Ministério do Trabalho, com Trad Hamadé), além de contar com o apoio de outro parlamentar independente no Ministério das Relações Exteriores, Faouzi Salloukh, que acompanha o Hizbullah.

AS CARTAS MUDAM DE MÃOS
De 2000 a 2005 o Líbano viveu um período de relativa tranqüilidade. O Hizbullah, no intuito de fortalecer sua representatividade em algumas regiões do país, aceitou compor sua lista eleitoral com parlamentares cristãos. (HAMZEH, 2004) Mais uma transformação antes inaceitável para os padrões de uma organização islamista. Esse pragmatismo surtiu efeito positivo nas eleições de 2005.
Mas o ano de 2005 não ficou marcado, apenas, pelo crescimento da participação do Hizbullah no Parlamento libanês, dois outros fatos tiveram repercussão direta nesse resultado: o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri, em 14 de fevereiro de 2005; e, a retirada das tropas sírias do Líbano, após quase trinta anos de influência direta sobre o país.
A morte de Hariri gerou uma comoção nacional e levou a população às ruas clamando por justiça. Hariri cresceu politicamente e financeiramente graças às suas estreitas relações com o Poder e, indiretamente, com o governo sírio. Entretanto, no final de 2004, quando a Síria receava tornar-se o próximo alvo dos Estados Unidos na “Luta contra o Terror”, o governante sírio, Bashar al-Assad, resolveu prestar apoio ao Presidente libanês, Emile Lahoud, no intuito obter solidariedade da população cristã libanesa para a manutenção de sua presença militar no Líbano. Para tanto, Assad conseguiu influir na prorrogação do mandato presidencial de Lahoud por mais três anos.
Os protestos de Hariri fizeram com que ele rompesse com Assad e se tornasse um dos críticos mais ferozes da presença síria no Líbano. Sua morte acabou gerando o surgimento de movimentos populares que pediam abertamente a saída das tropas sírias do Líbano. A “Revolução do Cedro”, como ficou conhecido esse momento histórico, alcançou seus objetivos nos meses seguintes com a retirada oficial dos militares sírios de solo libanês.
Durante a “Revolução do Cedro” as posições do Hizbullah e do Amal foram totalmente a favor da permanência das tropas sírias no Líbano. Esse posicionamento estava ligado ao vínculo entre as lideranças do Hizbullah e Assad. A Síria continuava precisando do Hizbullah para exercer influência sobre a política libanesa, assim como para fazer frente a Israel. E o Hizbullah, por sua vez, tem na Síria um aliado contra Israel e elo logístico para receber apoio do Irã. Daniel Byman, em artigo da Foreign Affairs, apresentava suas dúvidas sobre o futuro do Hizbullah com a retirada das tropas sírias, mas via boas perspectivas pela frente:

O Hizbullah é muitas coisas: um grupo terrorista, um movimento de guerrilha, um fantoche do Irã e da Síria para ser usado contra Israel, o campeão da comunidade muçulmana xiita do Líbano, uma forte liderança política libanesa e, inclusive, um construtor de hospitais e escolas. Através de todos esses papéis, ele exerce notável influência sobre o Líbano, mas não é claro quais aspectos da organização virá a se destacar se as forças sírias deixarem o país. Se o Líbano estiver livre da dominação síria os Estados Unidos aceitariam que o Hizbullah participe de um novo governo libanês. Washington exploraria essa participação para empurrar o Partido de Deus da influência síria – e, em última instância, do terrorismo e das atividades anti-Israel. No recente discurso do presidente George W. Bush ele disse que o Hizbullah poderia provar que não é uma organização terrorista “depondo as armas e não ameaçando a paz”, atacando no tom correto. (BYMAN, 2005)

Apesar de toda a força das manifestações programadas pelo Hizbullah o governo sírio foi obrigado a aceitar os desígnios da Resolução 1559 da ONU (8 de outubro de 2004), que exigia a retirada de todas as tropas estrangeiras de solo libanês para a restauração de sua soberania, assim como o desarme das milícias ali em ação.

AS REVIRAVOLTAS DAS CARTAS À MESA
Apesar de a eleição libanesa de 2005 ser considerada a primeira livre da ação síria em quase três décadas de ocupação, muitos analistas acreditam que a influência do vizinho não deixou de existir. Alguns parlamentares que foram eleitos – além dos membros do Hizbullah e Amal – também continuaram leais à Assad. Assim, é possível concluir que o governo libanês ainda não conseguiu trilhar um caminho independente e que objetive o desenvolvimento do Estado.
Se a saída das tropas sírias do Líbano significou certa derrota para o Hizbullah, sua influência política não foi abalada. Com a eleição de 14 parlamentares, o Hizbullah manteve seu prestígio em alta e passou a utilizá-lo para influir nos rumos do jogo. Nesse aspecto, a presença de Fouad Siniora como Primeiro-ministro significava uma barreira a ser transposta. Siniora fora eleito pelo bloco que lutara contra a presença síria no Líbano e, com isso, mantivera sua bandeira hasteada nesse sentido.
A situação política libanesa, que já era tensa, tornou-se ainda mais complicada quando, em julho de 2006, o Hizbullah manteve um atrito com militares israelenses e acabou seqüestrando dois deles, ferindo mortalmente outros.
Israel exigiu a devolução dos militares, ou de seus corpos, mas o Hizbullah somente aceitaria fazê-lo através de uma troca de prisioneiros. A negociação não teve sucesso e o governo israelense resolveu atacar o Líbano para destruir as bases do Hizbullah e seu poder de barganha. A força militar empregada pelo Estado de Israel provocou, em pouco mais de um mês de ataques, a destruição da região sul do país, assim como de sua infra-estrutura. Mas os ataques não se concentraram no sul e a capital também foi alvejada pela artilharia israelense, provocando o bloqueio aéreo, naval e terrestre do país.
Nesse período que o Líbano foi bombardeado, o Hizbullah não esmoreceu e continuou enfrentando o Estado de Israel com seus mísseis katiusha. O saldo final dos ataques foi a morte de mais de 1000 libaneses e uma centena de israelenses. Israel não conseguiu reaver seus soldados e o Hizbullah saiu fortalecido perante a população libanesa por ter lutado contra o invasor.
Essa vitória moral do Hizbullah colocou o governo de Siniora em xeque. Potencializado pelo fracasso israelense, o Hizbullah passou a exigir a renúncia de Siniora e a convocação de novas eleições. Diante da recusa o Hizbullah caracterizou sua retirada do governo com o desligamento de seus parlamentares do Gabinete.
Como é possível perceber, o Hizbullah conseguiu jogar sua partida estudando as características de seus adversários e aproveitando seus erros. A grande dúvida que se apresenta no momento é se o Hizbullah, de fato, transformou-se num partido político diferenciado – não compatível com o modelo Ocidental –, ou fez disso uma estratégia para chegar a esse momento e implementar seu projeto islamista.
É bem provável que o Hizbullah dos anos de 1980 não exista mais, exceto na visão de alguns integrantes mais radicais, no entanto, o que se apresenta é algo ainda mais delicado: a revisão do status da população muçulmana no Líbano. O Hizbullah alcançar essa força significa que, ou será revisto o modelo político libanês, ou o país poderá ser catapultado a outra guerra civil.
No momento atual, ainda repleto de incertezas, a jogada feita pelos israelenses com a invasão de julho pode ter sido um grande blefe. Como não havia a possibilidade de ganhar o jogo na mesa, resolveu reacender as diferenças internas dentre os grupos religiosos libaneses para que eles mesmos se destruíssem e, caso algum deles volte à mesa, as cartas já estarão arrumadas para Israel baixar um Royal Straight Flush com o tão esperado final do “jogo de soma zero”!

BIBLIOGRAFIA
BYMAN, Daniel. “Hezbollah’s Dilemma” In: Foreign Affairs. 13/04/2005, disponível em: www.foreignaffairs.org.
HAMZEH, Ahamad Nizar. In the Path of Hizbullah. Syracuse: Syracuse University Press, 2004.
HARIK, Judith Palmer. Hizbullah, the changing face of terrorism. Londres: I. B. Tauris, 2004.
LEWIS, Bernard. O Oriente Médio. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1996.
JABER, Hala. Hezbollah, born with a vengeance. New York: Columbia University Press, 1997.McDOWALL, David. “Lebanon: a conflict of minorities” In: Minority Rights Group. Report n. 61. London, 1986.




Notas:

* Doutorando em História (FFLCH-USP), Mestre em História (FFLCH-USP) e Bacharel em Relações Internacionais (FASM-SP).

[1] Este parágrafo não apareceu na tradução original publicada (em língua inglesa) pelo ‘Jerusalem Quaterly’. É possível que essa omissão seja devida ao fato de que a fonte (al-Safir) não incluiu este texto para a tradução, o qual aparece no original do Programa do Hizbullah. O Programa original foi publicado em 16 de fevereiro de 1985. O porta-voz da organização, Sheikh Ibrahim al-Amim, leu o Programa na Mesquita al-Ouzai em Beirute ocidental e, mais tarde, foi publicado como uma carta aberta “para todos os Oprimidos no Líbano e no Mundo”. Tem de ser enfatizado o fato de que em nenhum lugar o Hizbullah publicou o texto completo da propaganda da organização, eles preferiram publicar o programa eleitoral de 1996, o qual estava destinado à específica campanha de propaganda da organização, antes das eleições Parlamentares libanesas de 1996. (ICT – The Institute for Counter-Terrorism, www.ict.org.il)
[2] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa – parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa no período Pós-guerra civil. Excluía-se, assim, o sectarismo e dirimia as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como as tropas de Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa. Esse último item acabou ficando prejudicado, haja vista que Israel, somente, deixou o sul do Líbano em 2000 e a Síria em 2005. Nem todas as milícias depuseram as armas.
[3] Essa proporção foi estabelecida nos primórdios da criação do Estado libanês, no início do século XX, tendo como base o Censo populacional que havia sido feito em 1932 e que apontava uma pequena maioria de cristãos sobre os muçulmanos, algo na ordem de 4%. Apesar de ter havido grandes alterações no transcorrer da história libanesa, os cristãos maronitas, que mantinham alguns privilégios devido a pseudo-maioria apontada em 1932, não permitiam que outro censo fosse feito. (McDOWALL, 1986)

Friday, January 12, 2007

DISSERTAÇÃO ANALISA PROCESSO DEMOCRÁTICO NO LÍBANO







Publicado em: Assessoria de Comunicação Social - AÇÃO – SDI
Sala de Imprensa – FFLCH/USP

12.01.2007

Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sdi/imprensa.html


Por Mariana Lenharo

O islamismo e suas implicações no processo democrático libanês é o tema da dissertação de mestrado em História Social apresentada por Renatho José da Costa no Departamento de História da FFLCH-USP. A dissertação tem por objetivo questionar se o Líbano é, de fato, uma democracia. Mais do que isso, a tese questiona o próprio conceito de democracia, analisando o caso do Líbano sob as teorias de diferentes estudiosos a respeito desse sistema político. Ela discute também o surgimento do grupo xiita Hizbullah, os motivos que levaram esse grupo a se tornar um partido político e as conseqüências desse surgimento para o sistema político libanês.

O Líbano passou a ser um estado autônomo em 1943, quando foi declarada a independência e o Mandato francês chegou ao fim no país. Para isso, os cristãos maronitas e os muçulmanos sunitas, grupos étnico-religiosos com maior prestígio político na época, realizaram uma divisão dos cargos político-administrativos entre os demais habitantes do Líbano, que incluíam os muçulmanos xiitas, drusos, ortodoxos gregos, cristãos ortodoxos, dentre outros menos representativos. Esse foi o chamado Pacto Nacional que, apesar de não ser um documento escrito, era um compromisso que permitia que o governo representasse os diversos grupos religiosos de maneira proporcional. Entretanto, a população não tinha uma identidade coletiva, ou seja, a mesma cultura, religião, língua e mentalidade. Esse fato impediu a formação de um Estado-nação.

Renatho Costa, autor da dissertação, cita dois fatos históricos que ele considera paradigmáticos para que os grupos religiosos deixassem de lado o projeto de integração para a formação de uma verdadeira nação. Um deles é o fato de os muçulmanos guardarem ressentimentos com relação aos cristãos, graças aos privilégios políticos que esse grupo passou a ter a partir da formação do estado libanês. O outro fato foi quando, como reação à perda da supremacia política para os cristãos, os muçulmanos fundamentalistas passaram a lutar por um governo baseado nos princípios islâmicos e não mais nas leis do homem, fato que implica a negação da própria existência do estado nos moldes ocidentais.

A dissertação analisa se existe ou não uma democracia no Líbano utilizando as teorias de três estudiosos: Robert Dahl, Arend Lijphart e Giovanni Sartori. Dahl acredita que a Democracia é um modelo idealizado que nunca conseguiu ser posto em prática. O que existe é a poliarquia, sistema no qual a sociedade tem graus variáveis de participação no governo do país. Para o teórico norte-americano, a poliarquia é o regime político adotado pelo estado como transição para a democracia. A categoria de “oligarquia competitiva” adotada pelo Líbano após a independência poderia ser um caminho para a poliarquia, segundo Dahl. Entretanto, o Líbano estagnou um estágio antes de chegar à poliarquia porque a garantia do cargo de presidência aos maronitas e do cargo de Primeiro-ministro aos sunitas impediu a formação de uma oposição política.

Já Lijphart afirma que, devido à grande heterogeneidade social existente no Líbano, o modelo ideal para o estado seria o modelo consociacional, já que ele poderia facilitar o processo de democratização. Essa teoria sugere que sociedades segmentadas podem se aproximar da democracia por meio da organização da população em grupos que possuem características em comum. As decisões, então, são tomadas pelas elites desses grupos e há um consenso sobre a partilha do poder e dos recursos.

Sartori afirma que, antes de nos perguntarmos se um estado é democrático, devemos definir qual é o conceito de democracia que se está adotando. Esse cientista político italiano tem um pensamento liberal e ele defende que para diminuir os problemas causados por um sistema representativo, a única solução é a formação de uma opinião pública. Para isso, dois fatores são essenciais: “um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação; e uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos”. No Líbano, porém, não existem condições propícias para que isso se concretize.

Analisando qual é a influência do Hizbullah, como partido político, no sistema político libanês, a dissertação conta a história desse grupo a partir de sua origem. O Hizbullah surgiu oficialmente em 1985. A princípio, era um movimento religioso criado para lutar pela soberania do estado libanês. Ele se tornou um partido político após a assinatura do Acordo de Taif, documento que introduziu importantes emendas constitucionais no Líbano, a partir do qual se iniciaria o processo democrático no país. De início, o Hizbullah recusou-se a se tornar um partido, mas depois ele se rendeu sem, porém, depor as armas sob a alegação de que estava em luta armada com Israel. O partido passou a se integrar perfeitamente ao sistema político-eleiroral libanês, com a ressalva de que ele tem total domínio sobre a vontade de seus parlamentares.

Renatho Costa, com sua dissertação, questiona se o Líbano tornou-se uma verdadeira democracia a partir do Acordo de Taif. Fatos que poderiam comprovar a existência desse sistema político no país são os seguintes: o parlamento voltou a ter eleições e a estrutura de poder foi modificada, tendo o presidente dividido seu poder com o Gabinete e com os muçulmanos que exercem o cargo de Primeiro-ministro (sunita) e Chefe do parlamento (xiita). Outro questionamento proposto é se o destino do Hizbullah é tornar-se um partido político convencional, ou se a invasão israelense no Líbano em julho de 2006 significou uma interrupção nesse processo, já que foi provocada pelo seqüestro e assassinato de soldados israelenses pelo partido. Esses questionamentos enriquecem a discussão sobre islamismo, que passou a fazer parte do cotidiano do grande público a partir dos atentados de setembro de 2001. Fazendo uma análise profunda do tema, Renatho alerta para a estigmatização dos muçulmanos como terroristas a partir dos atentados.

Leia, abaixo, entrevista com Renatho Costa.

Mariana: Em sua dissertação de mestrado, você afirma que a manutenção do Hizbullah como milícia “só é possível porque ainda não foi encontrada uma fórmula que reduza os desequilíbrios sociais existentes no país”. Você quer dizer que se o Estado assumisse suas funções nas localidades xiitas, a população xiita deixaria de apoiar as ações do Hizbullah?

Renatho: O processo de fortalecimento do Hizbullah adveio da exclusão que os xiitas sofreram por parte dos cristãos desde a formação do Líbano. Para a sustentação no poder, o sectarismo foi a palavra de ordem durante os governos cristãos.

Quanto mais as localidades xiitas eram “esquecidas” pelo Estado, mais dificultava a formação de um sentimento nacional, então, houve a abertura para que organizações xiitas exercessem a função do Estado, primeiramente o Amal e, depois, o próprio Hizbullah. Desde a década de 1960 o Amal passou a criar escolas, hospitais, clínicas odontológicas, mesquitas, faculdades, etc. E, com o surgimento do Hizbullah esse processo se intensificou. A identificação com o Hizbullah é, em muitos aspectos, mais forte que com o governo central libanês, porque é a organização xiita que assiste essa população.

Assim, não basta o governo libanês tratar as regiões xiitas da mesma maneira com que o restante do território, haveria a necessidade de rever a participação política desse grupo religioso que, no dias de hoje, é maioria no Líbano.

Esse seria apenas o primeiro passo para dirimir as diferenças sociais existentes no Líbano. Com um Estado tratando de maneira igualitária todos os grupos religiosos, o questionamento acerca da militarização do Hizbullah poderia ser discutido com mais ênfase e sem reservas. Hoje, os cristãos maronitas preferem “discutir” a desmilitarização do Hizbullah sem muito empenho porque juntamente com essa questão deveria ser revisto o direito de os maronitas exercerem exclusivamente o cargo de Presidente – havia algum sentido em 1943, quando o Censo de 1932 apontava para uma pequena maioria de cristãos sobre os muçulmanos, mas não nos dias de hoje.
Reitero, num Estado que não segregasse parte de sua população por ser de outra religião, abriria a possibilidade para discutir o projeto do Hizbullah para o Líbano, ou seja, se caberia a instauração de uma República Islâmica. E, nesse contexto, talvez o projeto islamista do Hizbullah ficasse enfraquecido. Hoje, muitos xiitas que integram o Hizbullah não questionam o programa do partido em suas particularidades, o integram e aceitam como é. Se tivessem outra base de sustentação (como o Estado) poderiam questionar a militarização do Hizbullah com mais veemência e, assim, chegar à deposição de armas. Isso porque haveria uma perda substancial de apoio da população e, sem a legitimidade dada pelos xiitas, o Hizbullah acaba perdendo sua base.

Mariana: A invasão israelense em julho de 2006 foi provocada pelo seqüestro e assassinato de soldados israelenses pelo Hizbullah. Essa ação foi inesperada tendo em vista o seu processo de “normalização” como partido? O que levou o Hizbullah a essa atitude?

Renatho: Em 2000 o Estado de Israel retirou-se oficialmente do Líbano – inclusive, segundo o entendimento da ONU – no entanto, essa questão não foi resolvida pelos principais atores envolvidos no conflito: Líbano, Síria, Israel e Hizbullah. Apesar da “restauração” da soberania libanesa, a região de fronteira entre os dois países (Israel e Líbano) continuou sendo bastante tensa e com ataques de ambas as partes. Invasões de grupos militares (do Hizbullah e israelense) também sucederam com certa freqüência. Ocorre que, segundo o entendimento do Hizbullah, a luta com o Estado de Israel não cessou em nenhuma de suas duas frentes: primeiramente porque eles entendem que não houve a retirada completa do território libanês, ainda há exércitos israelenses ocupando uma pequena faixa de terra conhecido por Shebaa Farms; segundo, porque de acordo com a doutrina islamista do Hizbullah, há a necessidade de destruir o inimigo israelense que usurpou as terras sagradas da Palestina e pretende expandir seus domínios até criar a “Grande Israel” – que seria uma extensa faixa de terra que se estenderia do sul do Líbano, a partir do rio Litani, até o Sinai.

Devido a essa tensão na fronteira, em outras ocasiões o Hizbullah chegou a seqüestrar soldados israelenses e trocar a sua liberdade por de outros membros da organização que haviam sido presos anteriormente. Em tese, essa era a intenção do Hizbullah quando aprisionou os soldados israelenses em julho de 2006, o inesperado, talvez, tenha sido a recusa em negociar – por parte do governo israelense e sua violenta ação, na seqüência.

Com relação à ambigüidade da ação do Hizbullah como partido político e milícia; como foi exposto na pergunta anterior, dentro do Líbano essa é uma questão “resolvida”, haja vista o Hizbullah não poder sofrer represálias por parte do governo. No entanto, talvez, visto sob o ponto de vista da concepção de Estado, seria incoerente haver uma milícia no país, haja vista o monopólio da violência ser exclusivamente exercido pelo Estado. Esse foi o argumento do Estado de Israel para atacar o Líbano, atribuindo a responsabilidade das ações do Hizbullah ao governo libanês. Assim, o governo estaria sendo conivente com as ações criminosas do partido/milícia xiita.

Mariana: Você menciona que a visão do jihad como guerra santa não é compartilhada por todos os muçulmanos. Você quer dizer que o jihad, em vez de ser um movimento de “ataque” ao ocidente, como é visto hoje em dia, é somente um movimento de resistência com relação à invasão da cultura ocidental?

Renatho: Primeiramente o jihad era entendido somente no sentido de “esforçar-se” no caminho de Deus. Ou seja, seguindo corretamente os ditames do Corão e da Sharia, que são os livros sagrados dos muçulmanos.

A partir da interpretação de alguns ideólogos islamistas, tanto sunitas quanto xiitas, essa visão passou a ser adulterada e assumiu o sentido de “guerra santa”, sendo aplicado a todos que não seguissem os ensinamentos do Islã.

Conforme o entendimento dos ideólogos do Hizbullah, o jihad que está sendo empregado contra os inimigos do Islã é o Jihad Defensivo, ou seja, aquele que é empregado contra os agressores dos féis, do país e da umma (comunidade de todos os muçulmanos). Seria um ato de defesa dos muçulmanos contra seus algozes.

Para o emprego de uma “guerra santa” de proporções mundiais, segundo, ainda, os ideólogos do Hizbullah, haveria a necessidade de o Profeta ou o “Imã Desaparecido” (os membros do Hizbullah fazem parte do grupo de xiitas conhecido por duodécimo. Eles acreditam na sucessão do Profeta até o 12º Imã, que teria desaparecido e que somente voltaria à Terra para estabelecer a ordem) decretarem o Jihad Elementar (al-Jihad al-Ibtida’i).

Mariana: O igualitarismo do Islã exclui as mulheres, os escravos e os infiéis. Nem o Hizbollah nem nenhum outro grupo islâmico jamais pensou em estender o igualitarismo da doutrina islâmica para esses grupos? Não existem questionamentos, dentro do próprio Islã, a respeito disso?

Renatho: Segundo o Corão, todos os muçulmanos são iguais. No entanto, no mesmo Corão há distinções entre mulheres e homens. Hoje, segundo a visão ocidental, essa é uma questão inconcebível. A igualdade foi assimilada de tal forma à vida ocidental que se tornou um valor universal, colocando, assim, em xeque com os costumes e tradições islâmicas. No entanto, em países como o Irã – financiador do Hizbullah e que instaurou uma República Islâmica em 1979 – a participação da mulher na sociedade vem sendo ampliada. Inclusive em países bastante fechados para inovações ocidentais – no que tange aos costumes –, como a Arábia Saudita, as mulheres adquiriram o direito de voto no ano passado.

Dessa forma, a participação da mulher na sociedade islâmica é objeto de estudo de diversos pesquisadores e tema bastante controverso. Com a pressão ocidental para a revisão desses valores, além do empenho de intelectuais muçulmanos, a mulher muçulmana tem sido objeto de vários questionamentos e análises. Ainda, nesses questionamentos, caberia a obrigatoriedade, ou não, do uso do véu por parte das mulheres. Algumas organizações islamistas sunitas utilizam “mulheres-bomba” em suas ações, reforçando a tese de que muitos conceitos vêm sendo revistos.

A questão dos “infiéis” também é um tema de grande relevância nas discussões acerca do islamismo. Mesmo organizações como o Hizbullah, que defendem a criação de um Estado Islâmico, já vem tendo seu pensamento flexibilizado, entendendo que esse projeto cada vez mais se afasta da realidade libanesa.