Sunday, June 03, 2007

HIZBULLAH - QUANDO DEUS TEM DE ESCOLHER SEUS CORRELIGIONÁRIOS

Renatho Costa*

Em 2005, com a saída das tropas sírias do Líbano – que lá permaneciam desde 1976 –, a situação política do Hizbullah pareceu que ficaria abalada devido à perda do prestígio que lhe era atribuído pelo forte aliado. Com o Ocidente atento às ações do governo de Bashir al-Assad, a Síria parecia estar com seus dias contados – no que tange à interferência na política libanesa –, no entanto não foi exatamente esse cenário que prosperou.
Com a eleição parlamentar de 2005, apesar da vitória dos opositores da presença síria no Líbano, o Hizbullah conseguiu eleger mais parlamentares que em qualquer outra eleição. Fato esse que possibilitou sua participação no gabinete do Primeiro-ministro Fouad Siniora – contrário à presença síria no Líbano.
Assim, a análise mais viável era de que o Hizbullah seguiria a mesma trajetória de vários outros partidos políticos ocidentais que, diante do crescimento de sua base de apoio e reconhecimento de sua representatividade pelo Estado, ampliaria ainda mais sua participação no Parlamento. Exceto pelo fato de que, segundo o acerto político que vigora no Líbano desde sua independência (1943)
[1], cada grupo religioso teria direito a determinado número fixo de representantes no Parlamento, impossibilitando, com isso, a ampliação do número pré-estabelecido para os xiitas.
Em 1990, com a assinatura do Acordo de Taif, que colocou fim à Guerra Civil (1975-90), a participação dos muçulmanos foi equiparada a dos cristãos, assim, cada um passou a ter o direito de eleger 50% dos membros do Parlamento. Essa proporção também deveria expandir-se para a administração pública.
Um dos primeiros equívocos foi de que, apesar de ter havia a equiparação do número de representantes no Parlamento entre muçulmanos e cristãos, a realidade não mais se apresentava dessa maneira. Há muito tempo os muçulmanos já haviam superado o número de cristãos no país e, dentre os muçulmanos, o grupo dos xiitas era o que mais crescera. Então, ainda que tivesse havido um ganho político substancial para os muçulmanos, a sensação de sub-representatividade ainda perdurava, especialmente se levado em consideração que no âmbito sócio-econômico não ocorreu melhoras para os xiitas.
Assim, retomando aos acontecimentos de 2005, a vitória do Hizbullah sugeria um cenário em que o partido xiita estaria galgando mais poder, no entanto, com um limite que não poderia ser transposto e que, por sua vez, preservaria a característica confessional do regime político em vigor no país. Com o Hizbullah sem o efetivo apoio político-militar da Síria, talvez, o melhor caminho a seguir fosse trilhar sua trajetória dentro dos padrões democráticos ocidentais que gradativamente vinha sendo assimilado pelo partido, o qual outrora abraçava o ideal islamista e não abria concessões para a flexibilização de seu projeto.
Assentado na estrutura política libanesa, o Hizbullah continuou criticando as concessões que o governo libanês de Siniora fazia ao Ocidente e, reiterou a defesa do estreitamento de relações com o governo sírio. Por determinado período, as colocações que muitos analistas – como Martin Kramer – faziam acerca de o Hizbullah intencionar inserir-se no sistema político libanês para, quando obtivesse condições favoráveis, passar a implementar sua política islamista, tornou-se mera “teoria conspiratória”. Em muitos aspectos, o Hizbullah dava a entender que seu pragmatismo superara o islamismo. A milícia que nascera para defender a soberania do Estado libanês, e, por sua vez, passou a ser considerada terrorista pelo Ocidente, por força de seu pragmatismo galgou o status de partido político e agora se encontrava dentre os maiores e mais poderosos do Líbano – com uma estrutura que rivalizava o poderio do Estado.
Nunca fora possível aventar a possibilidade de que uma organização xiita islamista, como o Hizbullah, fosse capaz de fazer tantas concessões para poder participar da política libanesa e aceitar seus pressupostos – contrários ao projeto islamista que sempre fora defendido pela organização desde seus primórdios, no início dos anos de 1980. Mas o Hizbullah sobreviveu à Guerra Civil, às invasões israelenses e à saída síria do país. Continuou admirando o modelo político-religioso iraniano, mas criou mecanismos que o transformou num organismo político independente, e não um mero satélite do governo dos aiatolás, ou mesmo da Casa dos Assad.
No entanto, quando tudo parecia seguir o rumo da comunhão de interesses e, pela primeira vez houvera o surgimento de um “sentimento nacional libanês”
[2], um atrito, em meados de 2006, entre Hizbullah e o exército israelense, mudou o panorama do jogo interno e externo no Líbano e repercutiu em todo o Oriente Médio.
Apesar de Israel ter se retirado do território libanês em 2000, a região fronteiriça entre os dois países manteve a tensão. Os territórios continuavam sendo violados com freqüência pelos dois lados e, por essa razão, o Hizbullah já seqüestrara membros do exército israelense para servir de barganha por prisioneiros seus. Contudo, em julho de 2006, após uma ação do Hizbullah que resultou na morte três militares israelenses e seqüestro de dois soldados, o governo de Israel não aceitou negociar. Exigiu a devolução de seus soldados sem qualquer contrapartida.
A recusa do Hizbullah possibilitou a Israel invadir o Líbano e destruir completamente o sul do país, além de grande parte da infra-estrutura de outras regiões. O país sofreu um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo. Em pouco mais de 30 dias houve a destruição do país e o objetivo de Israel acabou não sendo alcançado: o Hizbullah não foi destruído e seus soldados não foram devolvidos.
A partir do cessar fogo estabelecido e, mesmo diante do fato de o Hizbullah ter sofrido baixas substanciais, a milícia (e partido político) xiita, não esmoreceu. Como fora a única força militar que se posicionou contra os ataques israelenses, acabou ganhando apoio de vários outros segmentos religiosos do país.
Findado o conflito, Israel, pelo menos num primeiro momento, saiu-se caracterizado como um péssimo estrategista. A vitória moral do Hizbullah abriu caminho para que seus questionamentos ganhassem mais força. Externamente o Hizbullah – que já era idealizado pelas organizações islamistas devido a seu sucesso obtido com a expulsão de Israel de território libanês em 2000 –, conseguiu tornar-se uma unanimidade. Pela segunda vez em sua história conseguiu impor a derrota aos israelenses
[3].
A partir daquele momento passamos a ver um novo Hizbullah, ou talvez um antigo. Segundo Nasrallah, secretário-geral do partido, o projeto para o Líbano sempre foi o de estabelecer, ali, uma República Islâmica aos moldes do Irã, contudo, como ele mesmo afirmara, a conjuntura não permitia a implementação de tal projeto, assim, o Hizbullah se moldara às condições políticas mais viáveis.
Com o grande apoio alcançado pelo Hizbullah, seus representantes passaram a questionar a predominância de partidários “pró-Ocidente” no governo, sendo que eles não lutaram contra Israel. O governo de Siniora passou a sofrer grande pressão por parte do Hizbullah para renunciar e abrir caminho para uma nova eleição – em tese, que referendaria a vitória do partido xiita.
Com o apoio do Ocidente, Siniora não renuncia e tenta encontrar uma maneira para que a perda política não seja tão devastadora. O Hizbullah, ao retirar seus membros do Gabinete – uma vez que não foi aceita sua proposta de ampliar sua participação no mesmo, passando a ter oito representantes –, abriu caminho para a discussão de questões há muito tempo “engavetadas”, dentre elas: a sub-representatividade política da comunidade muçulmana.
Rever esse equilíbrio de poderes sempre foi um tema muito delicado. Os cristãos, de certa forma, aceitavam a manutenção do Hizbullah como um partido político e milícia, desde que não houvesse o questionamento explícito de sua preponderância política. E, concomitantemente, os xiitas do Hizbullah tinham a liberdade de “governar” nas regiões de predominância xiita, sem interferência direta do Estado. No entanto, a vitória moral do Hizbullah e a ampliação de sua base de apoio possibilitaram que seus membros entrassem no mérito da questão relativa à participação xiita no governo.
Hoje, como em 1975, o Líbano encontra-se dividido em dois grupos: os partidários do Hizbullah – com apoio do cristão Michel Aoun, alguns drusos e da Síria – e o “Grupo 14 de Março”, que congrega vários grupos religiosos que são contra a presença síria e dão apoio ao Primeiro-ministro Siniora.
Em 1975, a questão relativa ao sectarismo levou o país à guerra civil e, por conseguinte, à destruição. Naquele momento tínhamos a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) instalada no Líbano, e que provocou a invasão do mesmo por Israel em 1978 e 1982. Os grupos religiosos libaneses também se dividiram – no que tange ao apoio aos palestinos –, e esse fato acabou gerando o agravamento do conflito.
Em 2007 temos um Hizbullah pleiteando maior representatividade no poder e o risco de que seu discurso islamista possa ser colocado em prática se o governo de Siniora resignar-se. Por outro lado, os questionamentos do Hizbullah acerca de uma maior participação muçulmana no governo são condizentes com o atual perfil do país. Cabe saber se será possível encontrar uma nova fórmula que contemple aos interesses de todos os envolvidos.
Parece que, indiretamente, Israel, ao invés de derrotar o Hizbullah, potencializou a organização. Ainda abriu a possibilidade para que ela mostre sua real face, ou seja, se, de fato, se transformou num partido político – aos moldes do Ocidente – ou, se o pragmatismo tão constante nas relações entre o Hizbullah e os demais atores nacionais e internacionais somente foi necessário para chegar a esse momento e que, a partir de agora será implantado seu programa islamista.
Também, esse é o momento de saber como seria a estrutura desse novo governo proposto pelo Hizbullah, caso ainda mantenha uma proposta conciliadora. Se, por ventura, o Hizbullah conseguir chegar a um acordo satisfatório que não gere uma nova guerra civil, ainda assim caberá a pergunta: como será um governo em que o Hizbullah tenha direito de veto? O mais importante será saber quem “Deus escolherá para ter como correligionário em seu partido”, porque se a exclusão for muito grande, o próximo governo estará fadado ao fracasso, assim como o de Siniora.Ceder é um ato bastante perigoso nesse momento, haja vista o Hizbullah estar numa posição privilegiada na negociação; no entanto, se o impasse continuar, o país caminhará lentamente a um estágio de insustentabilidade. E, como a história libanesa mostra, depois de iniciado um conflito, muitos atores externos quererão entrar na arena para tirar vantagens. Assim, o único que sai destruído é o Líbano, incansável no processo de reconstrução.

BIBLIOGRAFIA

Byman, Daniel. “Hezbollah’s Dilemma”. In Foreign Affairs, 13/04/2005. Disponível em: www.foreignaffairs.org.
Demant, Peter. Islam vs Islamism: The Dilemma of the Muslim World. Westport: Praeger Publishers, 2006.
Harik, Judith Palmer. Hizbullah, the changing face of terrorism. Londres: I. B. Tauris, 2004.
Jaber, Hala. Hezbollah, born with a vengeance. New York: Columbia University Press, 1997.
Mallat, Chibli. “Aspects of Shi’I thought from the South Lebanon: Al-‘Irfan, Muhammad Jawad Mughniyya, Muhammad Mahdi Shamseddin, Muhammad Husain Fadlallah” In: Papers on Lebanon, number 7. Centre for Lebanese Studies.Quilty, Jim. “Winter of Lebanon’s Discontents”. In: Middle East Report Online, 26/01/2007. Disponível em:
www.merip.org.



Notas:
* Doutorando em História Social (USP), Mestre em História Social (USP) e Bacharel em Relações Internacionais (FASM-SP).
[1] Nessa ocasião o acordo estabeleceu que a representatividade entre cristãos e muçulmanos seria da ordem de 6 para 5 – em favor dos primeiros. Esse acordo ficou conhecido como Pacto Nacional, no entanto, não foi um documento formal e assinado pelas partes, apenas reconhecido verbalmente.
[2] Durante as manifestações que se seguiram à morte do Primeiro-ministro Rafiq Hariri, no início de 2005, e que levaram a Síria a deixar o Líbano, o que se via nas ruas era o clamor pela “independência”. Independentemente de haver partidários da manutenção dos exércitos sírios no país, em todas as manifestações era possível perceber a presença da bandeira libanesa acima das demais. Um sentimento nacional possibilitou que se vislumbrasse o surgimento de um real “estado-nação”.
[3] Evidentemente que essa vitória deve ser considerada apenas no panorama político, haja vista ter havido a destruição de grande parte do arsenal do Hizbullah e sua perda humana ser muito superior à israelense. Em números gerais houve a morte de mais de 1600 libaneses, dentre eles, apenas 10% faziam parte da milícia. No entanto, o número de desabrigado ultrapassa a cifra 200.000.

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