Thursday, December 11, 2008

HEZBOLLAH DOIS A ZERO: QUEM SAI GANHANDO COM O PLACAR?


Inter Relações - Ano 08 - nº 30 / Outubro 2008 - ISSN: 1808-2831

INICIA A PARTIDA...
Dia 25 de maio o Hezbollah conseguiu emplacar seu segundo gol na partida que quem vem disputando desde sua criação – que se deu no início da década de 1980. A eleição do presidente Michel Suleiman, por uma estranha coincidência, o segundo gol da partida, aconteceu na mesma dada em que o primeiro (2000) – quando houve a retirada das tropas israelenses do sul do Líbano[1].
É bem certo que a eleição de Suleiman não foi assumida, publicamente, pelo Hezbollah como uma vitória partidária. Inclusive, com o discurso conciliador de Suleiman, a proposta foi transmitir o sentimento de que o único vitorioso fora o Líbano. Num tom otimista, o presidente anunciou: "Deixe-nos unidos... [para] trabalharmos no caminho de uma reconciliação sólida (...) Nós pagamos caro pela nossa união. Deixe-nos preservá-la palmo a palmo." (BBC News, 25/05/2008)
Discurso à parte, o fundamental é analisar essa situação à luz dos ganhos obtidos com a mudança que a situação político-eleitoral trará a partir da assimilação da proposta que a Liga Árabe apresentou em maio último, em Doha. A revisão do modelo eleitoral libanês sempre foi um empecilho para o crescimento político do Hezbollah e, para que Suleiman fosse aceito como candidato de consenso e chegasse à presidência, o compromisso de revisão do modelo constou no acordo de Doha.
O grande problema no modelo atual é que, apesar das modificações que sofreu com o Acordo de Taif (1989)[2] – a representatividade passou a ser igualitária, no Parlamento, entre muçulmanos e cristãos –, ainda continuou gerando a sub-representatividade dos muçulmanos, principalmente aos xiitas que, na década de 1990, já formavam a maior comunidade religiosa, individualmente, do Líbano. Assim, ao deter o poder nas mãos de apenas um grupo político, a exclusão dos demais repercute diretamente na dificuldade de construção do sentimento nacional, Lijphart, acerca desse modelo, faz as seguintes considerações:
Nas sociedades mais profundamente divididas, como na Irlanda do Norte [o Líbano também possui tal característica] o governo majoritário implica não propriamente uma democracia, mas sim uma ditadura da maioria e enfrentamento civil. Essas sociedades precisam é de um regime democrático que estimule o consenso, em vez de oposição; que promova a inclusão, em vez da exclusão, e que tente ampliar a maioria governante, em vez de se satisfazer com uma pequena maioria: essa é a democracia de consenso. (2003, p.53)
O modelo consensual, que poderia se apresentar como uma saída viável para o Líbano, implicaria na abertura para a participação maior dos xiitas no governo e, conseqüentemente, perda substancial do poder que encontra-se nas mãos dos cristãos. Em tese, em prol da construção de um estado nacional, não haveria grandes problemas em implantar uma política inclusiva e mais representativa dos segmentos sociais, no entanto, abrir mão do poder, no caso dos cristãos libaneses, poderia significar a abertura do estado para a instauração de um regime teocrático, nos moldes do Irã.
Esse receio de que o Líbano se transforme numa república islâmica advém do conteúdo da Carta Aberta do Hezbollah (1985), que apresentava o programa de prioridades da organização – ainda não era um partido político – e deixava clara sua intenção de reafirmar a luta contra o Ocidente, além de os Maronitas (que exerciam o poder no Líbano e mantinha relações próximas com os israelenses).
No entanto, a Carta Aberta também deve ser analisada à luz do momento histórico que o Líbano vivia, ou seja, com a Guerra Civil em curso e o Hezbollah tendo conseguido obter ganhos substancias para sua causa com o atentado contra os marines (1983) – que fez com que o governo Reagan retirasse suas tropas do Líbano.
Deixe-nos colocá-los [os objetivos do Hezbollah] verdadeiramente: os filhos do Hezbollah sabem quem são seus inimigos principais no Médio Oriente - os Falangistas [milícia do clã maronita Gemayel], Israel, França e os Estados Unidos. Os filhos de nossa ummah [comunidade muçulmana] estão agora em um estado crescente de confrontação com eles, e permanecerão assim até a realização dos seguintes três objetivos: (a) expelir os americanos, os franceses e seus aliados, definitivamente, do Líbano, colocando fim em todas as entidades colonialistas em nossa terra; (b) submeter os Falangistas a um poder justo e levá-los, todos, à justiça pelos crimes que perpetraram contra os muçulmanos e os cristãos; (c) permitir [que] todos os filhos de nosso povo determinem seu futuro e escolham, com toda a liberdade, a forma de governo que desejam. Nós convidamos todos para escolher a opção do governo islâmico que, sozinho, é capaz de garantir a justiça e a liberdade para tudo. Somente um regime islâmico pode interromper todas as tentativas adicionais de infiltração imperialista em nosso país. (Carta Aberta do Hezbollah apud COSTA, 2006, p.293)
No transcorrer desses anos, de 1985 a 2008, o Hezbollah passou por modificações substanciais em seu discurso. Primeiramente, com o a priorização da luta contra o Estado de Israel visou alcançar o apoio dos demais estados árabes que estavam em litígio com os israelenses. Da mesma forma, ao defender a tese de que lutavam pela retomada da soberania territorial do Líbano, automaticamente conseguiam legitimar sua luta perante a comunidade internacional.

UMA MUDANÇA ESTRATÉGICA
Em 1990, com o final da Guerra Civil, o Hezbollah se viu diante do dilema de reafirmar seu posicionamento enquanto organização islamista ou optar pela flexibilização de seu programa e aceitar as regras político-eleitorais, o que implicaria na transformação da organização em partido político. De fato, o pragmatismo venceu e o Hezbollah optou pela participação no jogo político, porém, sem abandonar seu braço militar. Segundo Hamzeh (2004), a opção pela via política só foi possível devido à influência iraniana no processo que fez com que os partidários pela manutenção do estado de guerra contra o Ocidente fossem afastados da liderança e Nasrallah, alçado ao posto de secretário-geral. Um segundo fator que contou para essa mudança de perspectiva do Hezbollah foi o alinhamento de interesses entre iranianos e sírios para que a organização xiita se transformasse num partido político e participasse do pleito eleitoral de 1992 – primeiro depois da guerra civil, que começou em 1975 –, assim poderiam exercer sua influência, também, por vias políticas.
Como partido político, e detentor da legitimidade e legalidade para travar a luta contra o Estado de Israel, o Hezbollah tornou-se o único ator a lutar pela soberania territorial do Líbano. Essa condição foi sustentada até 2000, ocasião em que o poderio militar do Hezbollah sobrepôs-se à milícia cristã que apoiava Israel – SLA (South Lebanon Army) – e, na seqüência, fez com que o exército israelense deixasse a “Zona de Segurança”. Assim, o Líbano voltou a ter seu território reintegrado.
Pela primeira vez na história o exército israelense fora derrotado. Isso, para o Hezbollah fez com que sua popularidade alcançasse todo o mundo árabe. O modelo de atuação da organização xiita passou a ser exaltado pelos islamistas. Estava, ali, o Hezbollah diante de seu primeiro gol. Vencia a partida contra o Estado de Israel, no entanto ela ainda transcorreria e a repercussão dessa vitória precisaria ser analisada, no que tange à política interna libanesa.
No verão que se seguiu à retirada de Israel, um sério debate surgiu no interior do Hezbollah sobre se o foco [de ação] seria dado à questão política libanesa, tal qual a corrupção, ou manteria a postura de resistência no Líbano e no Oriente Médio, concomitantemente. Depois de discussões internas no partido, optou-se pela última estratégia [e] Nasrallah consultou o rakbar (ou líder) iraniano, Aiatolá Ali Khamenei, que deu sua bênção para continuar a resistência, especialmente no cenário israelo-palestino. (NORTON, 2007, p.90)

NOVAS REGRAS EM CAMPO
Com os atentados de 11 de setembro de 2001, as organizações consideradas, pelos Estados Unidos, como terroristas – dentre elas o Hezbollah –, passaram por um período de expectativa para perceber qual seria a estratégia de ação a ser adotada a partir de então. Tendo o Afeganistão e Iraque assumidos a linha de frente na reação estadunidense, o Hezbollah continuou galgando espaço político no Líbano graças à vitória militar obtida em 2000 contra Israel. Se, por um lado, não havia a possibilidade de ampliar a participação no cenário político nacional, por outro, gradualmente o Hezbollah ampliou sua base de apoio nas eleições municipais.
A posição do Hezbollah começou a sofrer algum revés com a campanha contra a presença Síria no Líbano, a partir de 2004. Contudo, como fiel aliado da Síria, o Hezbollah assumiu, com ênfase, posição contrária à vontade da maioria da população libanesa e acabou perdendo dos demais grupos religiosos que haviam solidarizado com sua luta travada contra os israelenses.
A situação do Hezbollah só veio a piorar com a saída das tropas sírias do Líbano em 2005. Apesar de alguns analistas entenderem que os movimentos sociais que impulsionaram esse processo – conhecido como “Revolução do Cedro” – fizeram florescer o sentimento nacional na população libanesa; para o Hezbollah houve uma derrota flagrante. Apoiar a permanência síria, de certa maneira, enfraquecia, inclusive, a causa do Hezbollah pela restauração da soberania do estado. Evidentemente que o argumento aplicado ao Estado de Israel não era estendido à Síria de maneira análoga, os sírios eram tidos como benfeitores que deveriam permanecer no país até se configurar o momento ideal para que o Líbano assumisse a responsabilidade por sua segurança.
O resultado desse apoio ao aliado sírio só não foi pior porque nas eleições que seguiram à retirada síria, o Hezbollah conseguiu ampliar sua base de apoio no Parlamento e aceitou participar do Gabinete pela primeira vez. A alegação para sua não participação anterior advinha do fato de que o partido entendia que se o fizesse estaria endossando a proposta política implantada pelo governo maronita, o que não era interessante.
Com a participação política ampliada, mas sem o apoio militar da Síria, o Hezbollah permaneceu travando sua luta pelo poder somente no âmbito interno até o início do segundo semestre de 2006. Nessa ocasião, uma ação mal planejada na fronteira entre Líbano e Israel levou o Hezbollah a seqüestrar e matar soldados do exército israelense. A impossibilidade de negociação imposta pelo primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, acerca da devolução de prisioneiro do Hezbollah em troca dos militares seqüestrados proporcionou as condições ideais para que Israel programasse sua invasão sobre o sul do Líbano e, também, às principais localidades do país.
A derrota moral que o Hezbollah sofrera ao opor-se à saída das tropas sírias do Líbano foi completamente revertida durante a invasão israelense. Isso porque a milícia xiita foi a única a se opor à violência imposta ao Líbano. Em seus 34 dias de invasão o exército de Israel não conseguiu destruir as bases do Hezbollah, porém, acabou com a infra-instrutora do país e vitimou mais de mil libaneses. Se, por um lado, o Hezbollah tivera que rever sua estratégia de jogo com o revés sofrido em 2005, por outro, com o final do conflito de 2006 e apoio da população libanesa – independentemente de religião –, os xiitas puderam voltar-se para a ofensiva na partida.
A partir do momento que houve o reconhecimento do valor da Resistência contra Israel, o Hezbollah aproveitou o ganho militar para explorar a situação política. Nessa marcha em busca de um novo gol, o Hezbollah apostou alto, exigindo, com isso, uma maior representatividade no governo, caso contrário o deixaria. A segunda opção vingou! Derrota? Não necessariamente.

EM BUSCA DO SEGUNDO GOL
Em novembro de 2007 o mandato do presidente Emile Lahoud chegou ao fim e não houve como encontrar um nome consensual para sucedê-lo. A lacuna de poder provocou a instabilidade política no Líbano e suscitou o risco de o país imergir numa nova guerra civil. O Hezbollah aproveitou o status adquirido após a vitória contra Israel (2006) para cobrar por “seus trabalhos prestados”. A diferença é que a população libanesa (considerando, aqui, os cristãos que reconheceram o valor da participação do Hezbollah na luta contra Israel) até aceitaria o Hezbollah como a Resistência, no entanto, abrir mão de sua participação no poder era uma discussão que não interessava ser travada naquele momento.
De fato, as discussões perduraram até meados de maio, quando, numa atitude de risco, o primeiro-ministro libanês, Fouad Siniora – considerado “pró-Ocidente” –, depôs um chefe de segurança do Aeroporto Internacional do Líbano (partidário do Hezbollah) e fechou a emissora de TV do partido.
O resultado imediato foi o enfrentamento entre sunitas – liderados pelo bloco “pró-Ocidente” – e partidários do Hezbollah – “pró-Síria” – pelas ruas de Beirute e o receio de que estariam na iminência de que os avanços institucionais que o Líbano alcançara desde o fim da guerra civil iriam se perder. Em pouco menos de uma semana de atritos, a cidade de Beirute foi sitiada e os conflitos entre as milícias provocaram a morte de 64 pessoas, além dos feridos. A situação somente começou a reverter quando Siniora recuou com seu decreto e repôs o membro do Hezbollah no posto de comando no Aeroporto Internacional de Beirute, além de possibilitar a reabertura da emissora de TV do partido xiita.
A situação emergencial levou a Liga Árabe a convocar uma reunião em Doha para auxiliar no restabelecimento da governabilidade no Líbano. Nesse momento o Hezbollah conseguiu emplacar seu segundo gol, agora, contra os “pró-Ocidente”. Para que os conflitos cessassem definitivamente e houvesse a aceitação do nome do General Suleiman para a presidência, o partido exigia o direito de veto no novo Gabinete a ser constituído, além de que fosse feita a revisão da lei eleitoral para que os xiitas tivessem uma maior participação.
O que era inaceitável, inicialmente, para o bloco “pró-Ocidente”, acabou se tornando a única saída para que o Líbano não entrasse em um novo conflito interno. O risco em ceder tanto para o Hezbollah advém do receio de que o partido xiita venha a utilizar os meios democráticos para alçar o poder e, uma vez revestido dele, passe a colocar em prática seu projeto de instaurar uma república islâmica no Líbano.
Por outro lado, não aceitar a negociação seria partir para o enfrentamento direto com o Hezbollah e, objetivamente, nenhum grupo religioso no Líbano tem poder de fogo para enfrentá-lo – nem mesmo o exército nacional. Dessa maneira, talvez a escolha tenha sido feita a partir da opção “menos pior” – sob o ponto de vista dos partidários “pró-Ocidente”.
No entanto, apesar desse receio perdurar, é perceptível que o discurso do Hezbollah alterna-se gradativamente e o projeto de criação de uma república islâmica no Líbano vem sendo afastado por seu secretário-geral nas inúmeras vezes que se pronunciou a esse respeito. Segundo Nasrallah, o modelo islâmico ainda continua sendo o ideal, no entanto, no Líbano não há uma conjuntura político-social que viabilize sua implantação.
Por ora, cabe aguardar os desdobramentos dos fatos mais recentes para entender se o segundo gol marcado pelo Hezbollah corresponde a um avanço no sentido de incluir a população xiita no contexto sócio-econômico libanês, ou se servirá como trampolim para o partido galgar o poder e implantar seu projeto islamista.
Nesse sentido, o pragmatismo do Hezbollah é tamanho que ele disputa sua partida como se fosse uma final, alterna momentos de grande euforia com paradas momentâneas para reavaliar a estratégia. Aceita, inclusive, a substituição dos jogadores adversários sem se cansar, porém, no final, cabe a pergunta: contra quem o Hezbollah está jogando afinal? A vitória do Hezbollah representará o fortalecimento do Líbano? Se não for assim e o situação se configurar numa partida cujo único resultado é um jogo de soma zero, ainda assim os adversários evitarão a guerra civil? Como afirma Robert Fisk, “pobre nação”!

Notas:
[1] Essa data é comemorada pela comunidade libanesa e conhecida como “Dia da Vitória”.
[2] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa – parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa, excluindo o sectarismo e dirimindo as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa.

Referências:
BBC NEWS. “Lebanon vote ends leader deadlock”, disponível em: < http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/7418953.stm>. Acessado em: 25/05/2008.
COSTA, Renatho. O Islamismo e suas Implicações no Processo Democrático Libanês. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, São Paulo, 2006.
HAMZEH, Ahamad Nizar. In the Path of Hizbullah. Syracuse: Syracuse University Press, 2004.
LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliera, 2003.
NORTON, Augustus Richard. Hezbollah. Princeton: Princeton University Press, 2007.

Tuesday, May 27, 2008

ENTREVISTA À RÁDIO ELDORADO AM

Segunda-feira, 26 de maio de 2008.

Entrevista concedida à jornalista Vanessa di Sevo sobre a eleição do novo presidente libanês, Gal. Michel Suleiman.

Vinheta: Entrevista.

Vanessa Di Sevo: Bom, o Líbano finalmente elegeu e empossou o novo presidente depois de 20 tentativas, desde novembro do ano passado. O Líbano, nós já informamos aqui, depois de uma onda de violência no início do mês. E pra comentar as questões do Líbano, nós convidamos o Professor de Pós-Graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Bom dia, Professor Renatho Costa.

Renatho Costa: Bom dia, Vanessa.

Vanessa Di Sevo: Bom, será que finalmente o Líbano, agora, caminha para a estabilidade?

Renatho Costa: Bom Vanessa, pelo menos agora é o que parece. Nós estamos depois da eleição do Presidente Michel Suleiman, e até a adoção do discurso dele bastante conciliador, é bem provável que dependendo dos desdobramentos – porque quando a gente fala acerca do Líbano é difícil ter uma posição definitiva.

Vanessa Di Sevo: É verdade!

Renatho Costa: Lá as mudanças são muito rápidas e, às vezes, por questões pequenas. Pequenas assim, sob o ponto de vista da repercussão que depois acontece. Mas eu acho que pela adoção do discurso do Presidente, pelo que nós temos percebido nesses dias, quer dizer, nesses momentos. Porque a eleição acabou sendo ontem. Então, é bem provável que nós tenhamos um período de negociações.

Ouça a entrevista completa através do audio, clicando abaixo.

Tuesday, February 19, 2008

ONDE COMEÇA O LÍBANO?

A morte de Imad Mughnieh revive a “Operação Paz para a Galiléia”
Entrevista publicada em CENÁRIO INTERNACIONAL em 18/02/2008 - ISSN 1981-9102. Disponível no site: http://www.cenariointernacional.com.br/default3.asp?s=artigos2.asp&id=69

Renatho Costa*

Dia 12 de fevereiro o Líbano presenciou mais um capítulo de sua infindável, e sangrenta, trajetória de “estado-nação”. Com o assassinato de Imad Mughnieh – um dos líderes do Hezbollah que era procurado pelos serviços de inteligência estadunidense e de Israel, devido às inúmeras ações terroristas [1] atribuídas a ele –, o que, aos olhos dos detratores da ação poderia significar o fim de uma era de terror, reacendeu uma crise que se estende desde 2006, ocasião em que Israel invadiu o Líbano.
Evidentemente que a autoria pelo assassinato do líder do Hezbollah não foi assumida pelo governo de Israel, tampouco pelos Estados Unidos, no entanto, ambos deram a entender que, com a morte do terrorista, o ciclo de terror reduziria, pois a organização xiita libanesa ficaria acuada. Outra razão para que nenhum desses estados assuma a autoria pelo assassinato diz respeito, diretamente, ao fato de que ambos são os grandes porta-vozes da “guerra contra o terror” [2] e, a utilização do mesmo método de seus inimigos para alcançar seus resultados enfraqueceria a proposta. No entanto, a Doutrina Bush não deixa dúvidas acerca dos meios que os Estados Unidos usarão para proteger o mundo da ameaça do terrorismo:

A América irá ajudar as nações que precisarem de nossa assistência no combate ao terror. E a América irá responsabilizar as nações que estejam comprometidas com o terror, inclusive aquelas que abrigam terroristas – porque os aliados do terror são inimigos da civilização [nessa ocasião presidente Bush tentava legitimar a invasão ao Afeganistão, no entanto, esse mesmo argumento sempre foi utilizado para pressionar a Síria]. Os Estados Unidos e os países que estão cooperando conosco não devem permitir que os terroristas criem novas bases. Juntos, iremos procurar negar-lhes refúgio, a cada ocasião. (...) Nossa prioridade será, primeiramente, a de demonstrar e destruir as organizações terroristas de alcance global e atacar suas lideranças, seu comando, seu controle e suas comunicações, seu apoio material e suas finanças. Isso terá um efeito desorganizador sobre a capacidade de terroristas de planejar e operar. (Bush, 2002/2003, p. 79/85)[3] (grifos meus)

Se, por um lado, os idealizadores do atentando em Damasco, contra Mughnieh, quiseram demonstrar aos seus adversários que não há lugar onde estarão seguros, nem mesmo sob a guarda dos aliados sírios, por outro lado, a morte do líder do Hezbollah repercutiu diretamente na situação política libanesa e a inflamou.
O Líbano, após a invasão israelense de 2006, viu-se, mais uma vez, diante do maior problema – ainda não resolvido – de sua história, qual seja, a melhor maneira para representar a sua população no cenário político interno.
A fórmula utilizada na ocasião da criação do estado, em 1943[4], demonstrou-se tão frágil que levou o país a duas guerras civis (1958 e 1975-90). A solução encontrada para por fim à Segunda Guerra Civil, que se deu com a assinatura do Acordo de Taif, em 1990, apenas conseguiu dirimir o problema da representatividade, no entanto, àquela ocasião a população muçulmana já era maior que a cristã e a sub-representatividade política não foi sanada.
E, se em 2000, quando o Hezbollah conseguiu expulsar as tropas israelenses do sul do Líbano, essa vitória repercutiu diretamente na situação política libanesa e fez com que o partido político ampliasse o seu status. Em 2006, ao resistir aos ataques israelenses – mesmo com praticamente toda a infraestrutura do país sendo destruída – e configurar-se como a verdadeira Resistência libanesa, o momento de “cobrar” por seus feitos chegou. Nasrallah, secretário-geral do partido, expunha que as bases gerais para uma futura negociação perpassariam pelo fortalecimento do poder do Hezbollah dentro do cenário político libanês.

O Outono de 2006 foi marcado pela escalada de tensão e cobranças. Em 31 de Outubro, a proposta de Nasrallah para a criação de um governo de unidade nacional transformou-se num flagrante ultimato: o governo deve concordar com o novo arranjo, com o Hezbollah com poder de veto sobre todas as medidas do governo, ou encarar as muito difundidas demonstrações e outras formas de pressão organizada, tal como o bloqueio da rota para o aeroporto internacional. (Norton, 2007, p.155-6)

Assim, o Hezbollah passou a ambicionar e cobrar com mais veemência uma reforma na estrutura política libanesa que visasse ampliar a participação do partido xiita; no entanto, por mais que grande parte da população – muçulmanos e cristãos – tivesse entendido que a participação do Hezbollah teria sido honrosa e dignificante para o Estado (2006), abrir mão de regalias não era algo facilmente assimilável.
As discussões levaram à retirada dos membros do Hezbollah do Gabinete e ao início de uma crise política que não consegue alcançar um fim satisfatório. Com o agravamento da situação, no final de 2007 o presidente Emile Lahoud deixou o governo e o país não conseguiu eleger seu substituto. Quatorze datas foram marcadas para a nova eleição presidencial, mas todas eles foram adiadas.
Com o assassinato de Imad Mughnieh, os dois grandes blocos políticos que se opõem no Líbano encontraram-se para celebrar momentos distintos de sua história. Dia 14 de fevereiro, o grupo que faz oposição à Síria se reuniu nas proximidades da Praça dos Mártires, em Beirute, para celebrar os três anos da morte de Rafik Hariri. Ao sul da capital, o Hezbollah reunia outra multidão para a cerimônia fúnebre de mais um de seus mártires.
Rafik Hariri, com sua morte, foi o viabilizador da “Revolução do Cedro”, a qual trouxe ao Líbano uma possibilidade de união. Durante as manifestações em praça pública, em 2005, a favor ou contra a presença militar síria no Líbano, o que se viu foi uma população empunhando a bandeira do Líbano, não apenas a de seu grupo religioso. Nascia ali o sentimento de estado-nação para aquele povo?
A possibilidade de nascimento de um novo Líbano era mesmo difícil de acreditar. Até porque, depois do fratricídio que acometeu o país por anos de guerra civil, presenciar os vários grupos religiosos empunharem uma mesma bandeira – no intuito de buscar uma identificação com a nação –, era algo que muitos analistas não esperavam ser possível. E, nesse sentido, a morte de Hariri foi extremamente emblemática, por mais que tenha advindo de um atentando terrorista que explodiu o seu carro e vitimou muitas outras pessoas.
Chegamos a Fevereiro de 2007 e a promessa de um Líbano unido torna-se cada vez mais utópica. As divergências entre os grupos religiosos e a inadmissibilidade de ceder parcela do poder para um grupo rival acaba sendo o maior obstáculo a ser ultrapassado. E, quanto mais a situação política libanesa se desestabiliza, mais os grupos religiosos tendem a buscar abrigo junto aos seus pares.
Thomas Friedman, jornalista norte-americano, que fez a cobertura da Segunda Guerra Civil libanesa conseguiu descrever esse sentimento do povo libanês diante da insegurança do Estado:

O indivíduo libanês deriva tradicionalmente sua identidade social e apoio psicológico de suas filiações primordiais: família, bairro, ou comunidade religiosa; dificilmente da nação como um todo. Sempre fora druso, maronita ou sunita antes de se considerar libanês; e sempre membro dos clãs dos Arslan ou Jumblat, antes de ser druso; ou parte dos clãs maronitas Gemayel ou Franjieh, antes de ser maronita. A guerra civil e a invasão israelense só fizeram reforçar essa tendência, dividindo os libaneses em microfamílias, ou comunidades de aldeias ou religiosas muito mais unidas, ainda que os afastasse mais uns dos outros enquanto nação. (1991, p. 56)

Se o Líbano já vivia uma forte tensão política com a dificuldade de escolher um nome conciliador para governar o país e encontrar uma fórmula para estabelecer a divisão do poder dentro do Gabinete, a morte de Mughnieh talvez possa vir a representar o mesmo que a “Operação Paz para a Galiléia” significou em 1982.
A criação da “Zona de Segurança” em território libanês – resultado da invasão israelense de 1982 – abriu uma nova frente de batalha dentro da guerra civil libanesa e fez com que o surgimento do Hezbollah fosse acelerado. Agora, quando a instabilidade política libanesa parecia ser a grande batalha do Hezbollah, a morte de seu líder revitaliza essa frente de batalha.
Nasrallah, em seu discurso durante a cerimônia fúnebre de Imad Mughnieh, deixou bem claro que sua organização não recuará diante do crime e que a guerra contra o Estado de Israel extrapolará as fronteiras do Líbano:

“Vocês cruzaram as fronteiras," [em referência à morte de Mughnieh ter sido na Síria] disse ele [Nasrallah] num discurso que estava especialmente veemente, mesmo para o padrão belicoso de Nasrallah. "Sionistas, se vocês querem esse tipo de guerra aberta, então deixe estar, e deixe que o mundo inteiro ouça: Nós, como qualquer outro povo, temos o sagrado direito de nos defender, e qualquer coisa que precisarmos fazer para nos defender, nós faremos." (Shadid, The Washington Post, 14/02/2008) (grifos meus)

Assim terminou mais um capítulo da incerta história do estado libanês: com sua população dividida e celebrando seus mortos. Hariri e Mughnieh talvez tenham seguido trajetórias distintas em suas vidas, no entanto, além de terem sido vitimados pelo mesmo tipo de atentado, foram além: em 14 de fevereiro fizeram o Líbano parar e lançaram mais uma dúvida sobre o futuro do país: Onde começa o Líbano?
Porque essa é a única pergunta que precisa ser respondida nesse momento. Se os clãs religiosos conseguirem reascender o sentimento que brotou na “Revolução do Cedro”, pode ser que ainda seja possível evitar uma Terceira Guerra Civil, no entanto, é necessário, também, que os demais atores que transitam pelo sistema internacional deixem de querer resolver suas pendência em campo libanês.
O Líbano serviu como campo de batalha para resolver os problemas de muitos países durante a Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética, direta e indiretamente, usaram seus canais de influência para dificultar a estabilidade política libanesa. Na seqüência, a dificuldade de resolver a “Questão Palestina” em seu território deslocou o conflito para o Líbano. A OLP (Organização para a Libertação da Palestina, na época, liderada por Yasser Arafat) deslocou-se para o Líbano e trouxe consigo Israel.
A morte de Imad Mughnieh, de fato, traz tranqüilidade para as vítimas das ações atribuídas a ele ou, novamente – considerando a invasão israelense de 2006 como um fiasco –, se traduz em mais um erro estratégico e coloca a população judaica de todo o mundo sob a mira da revanche do Hezbollah?
Esperemos os próximos lances dessa partida porque o final, quando se trata do Líbano, é sempre uma incógnita!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bush, George W. “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América” in: Política Externa, São Paulo: Ed. Paz e Terra, Gacint/USP, IEEI, vol. 11, nº 03, dez/jan/fev, 2002/2003, p. 78-113.
Friedman, Thomas. De Beirute a Jerusalém. São Paulo: Bertrand, 3ª edição, 1991.
Norton, Augustus Richard. Hezbollah. Princeton: Princeton University Press, 2007.
Shadid, Anthony. “Hezbollah Chief Threatens Attacks Against Israel - Group Blames Israel for Top Commander's Death” in: The Washington Post, edição de 14/02/2008. Disponível em: www.washingtonpost.com.

Notas:
*Doutorando em História Social pela FFLCH-USP, Mestre em História Social, também pela FFLCH-USP e Bacharel em Relações Internacional pela FASM-SP. Especialista em Terrorismo e Estudos do Oriente Médio. Professor do curso de Pós-Graduação em Relações Internacionais da FESPSP.
[1] Em 1982, durante a Segunda Guerra Civil libanesa (1975-90) as tropas estadunidenses foram enviadas ao país para auxiliar na retirada da OLP do território e lá permaneceram até o ano seguinte, ocasião em que entraram em atrito com milicianos muçulmanos (em apoio aos maronitas) e passaram a ser considerados apoiadores de Israel. Como represália, Mughnieh teria programado um atentado à bomba contra o quartel dos marines, o qual vitimou 241 militares. Também, em 1992, numa suposta represália ao assassinato do líder do Hezbollah na ocasião, Musawi, pelo serviço de inteligência israelense, Mughnieh teria organizado um atentado à embaixada israelense em Buenos Aires e, na seqüencia, em 1994, à AMIA, associação beneficente de judeus.
[2] Idealizada pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no momento subseqüente aos ataques às Torres Gêmeas em Nova York e ao Pentágono, em Washington (2001), e conhecida por “Doutrina Bush”.
[3] Esse fragmento de texto faz parte do documento intitulado “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América”, que ficou mais conhecido como Doutrina Bush. Ele foi redigido em 17/09/2002 e enviado ao Congresso dos EUA em 20/09/2002.
[4] A presidência seria destinada ao grupo religioso com maior população (maronita); o cargo de primeiro-ministro caberia a um muçulmano (sunita) e, posteriormente, o cargo de chefe do parlamento acabou sendo destinado a um muçulmano xiita. A representação no parlamento se daria na proporção de 6 para 5 em favor dos cristão.