Sunday, September 24, 2006

DE VOLTA AO 'ATOLEIRO LIBANÊS'











Artigo publicado em INTER RELAÇÕES – FASM/SP. Ano 6, nº 23. Outubro/2006. ISSN: 1808-2831
Disponível em: http://www.fasm.edu.br/index.php/240

de Renatho Costa*

Durante o período em que transcorreu a Segunda Guerra Civil Libanesa[i] (1975-90) o mundo assistiu extasiado ao fratricídio que lá ocorria mas não conseguiu utilizar os meios legais para impedi-lo. De fato, até que tentou fazer uso de alguns mecanismos disponíveis, como as Resoluções do Conselho de Segurança da ONU[ii] – que criaram uma força de paz para a região (UNIFIL) e que, a partir de 1978, passaram a repudiar com veemência a presença israelense no país, exigindo sua retirada –, mas não surtiram efeito e os massacres continuaram acontecendo.
Poderíamos, então, aventar possibilidades para a ineficiência da ONU; questionar o quão multilaterais são as decisões do Conselho de Segurança; colocar em dúvida os interesses geopolíticos dos Estados Unidos no Oriente Médio durante o período da Guerra Fria – que transcorreu paralelamente à Guerra Civil libanesa. Poderíamos, se assim quiséssemos, insinuar que os Estados Unidos pautam sua política externa para Oriente Médio com base nos interesses do Estado de Israel.

Nesse jogo de possibilidades, podemos estabelecer desencadeamentos lógicos que explicam muitos fatos. Esclarecem quem são os culpados e os inocentes, os vilões e os mocinhos, os radicais e os ponderados, etc. Para isso basta escolher uma maneira específica de perceber os acontecimentos mundiais que, impregnado por ela, já virão pré-concebidas as perguntas e respostas. Dito isso, poderíamos emprestar os olhos neoconservadores do presidente Bush que a explicação para os ataques contra o Líbano, em julho último, estaria fortemente embasada nos pressupostos da guerra preventiva e da guerra contra o terror.
É por esse prisma, também, que o posicionamento de Israel acerca de seu ataque contra o Líbano se apresentou. Muito mais que simplesmente estar reivindicando os corpos dos soldados mortos pelo Hezbollah, estava tentando impedir que uma situação fora de seu controle pudesse vir a acontecer. Essa situação se caracterizaria por um possível incremento do potencial bélico do Hezbollah que, por sua vez, colocaria em risco a segurança das localidades ao norte de Israel e, quiçá, Tel Aviv e outras cidades mais ao sul.
Olhos menos atentos ao risco suscitado por Israel, ou que adotassem outro viés, poderiam entender que os ataques que destruíram praticamente toda a infra-estrutura do Líbano em pouco mais de um mês e mataram mais de mil pessoas – menos de 10% eram membros do Hezbollah –, advieram de um país que mantém vivo os ideais proclamados pelo Movimento Sionista na Conferência de Paz de Paris (1919), quando pretendiam criar o “Lar Nacional Judeu” cuja fronteira ao norte seria o Rio Litani e, ao sul, o Sinai.
A proposta sionista não foi aceita internacionalmente e o Estado de Israel foi criado obedecendo outras delimitações, entretanto, conforme Saad-Ghorayeb nos expõe, a doutrina defendida pelo Hezbollah faz outra leitura dos fatos e continua entendendo que o movimento sionista, assim como o Estado de Israel, possuem características expansionistas e pretendem concretizar um projeto bíblico.

A judaização da Palestina não é o objetivo final do projeto Sionista, mas é meramente o primeiro passo em direção do estabelecimento do ‘Eretz Israel’ (a Terra de Israel), ou a judaização da região inteira. (...) o objetivo final Sionista é realizar o sonho bíblico judaico de expandir [suas terras] do Nilo ao Eufrates, o qual está simbolizado pelas duas barras azuis de cada lado da Estrela de David, na bandeira de Israel. O ‘Grande Estado Israelense’, com isso, alcançaria partes do Egito, Síria e Iraque, e, integralmente, a Palestina, Jordânia e Líbano; os quais tornar-se-iam judaizados no processo. (Saad-Ghorayeb, 2002: 141)

O Hezbollah, no intuito de reforçar sua tese, aponta dois momentos históricos em que a proposta expansionista israelense teria sido colocada em prática, quais sejam, em 1978, quando Israel efetuou a ‘Operação Accountability’ e prolongou suas fronteiras até o Rio Litani e, em 1982, por ocasião da ‘Operação Paz para a Galiléia’, quando foi estabelecida a ‘Zona de Segurança’ entre os dois Estados, consumindo aproximadamente 10% do território libanês.
Como torna-se perceptível, o conflito entre Hezbollah e Israel pode ser visto através de várias lentes e os argumentos variam de acordo com a (boa)vontade e (im)parcialidade dos analistas, entretanto, esses dois aspectos suscitados somente fazem parte da miríade de possibilidades disponíveis para entendermos o conflito. Se fizéssemos uma abertura mínima na lente da câmera, que ora coloca o Líbano sob foco, já perceberíamos que outros atores também estão envolvidos no problema, muitos dos quais prefeririam permanecer à margem dos fatos pois não têm como se posicionarem sem que isso gere ainda mais tensão.
Um dos primeiros atores que logo perceberíamos nessa ampliação do campo visual seria o Presidente libanês Emile Lahoud. Qual a sua relevância nos ataques de julho? Grande, se considerarmos que uma das alegações do governo israelense é de que o Líbano deve responsabilizar-se pelas ações do Hezbollah, haja vista reconhecê-lo oficialmente como partido político e milícia. Com base nessa legitimidade adquirida junto ao Estado e, uma vez que o governo nada fez para evitar que a milícia xiita implementasse suas ações militares contra Israel, por conseguinte, os israelenses entendem que o Líbano deva ser co-responsabilizado por sua complacência.
De fato, o posicionamento de Lahoud nessa questão requer muito cuidado. Na qualidade de aliado político de Assad[iii] que, por sua vez, é um dos apoiadores do Hezbollah, a tomada de qualquer medida formal contra a organização xiita iria de encontro à intenção síria de manter a tensão entre Israel e Hezbollah. A lógica desse conflito, segundo o ponto de vista sírio, seria: enquanto houver tensão e a Síria exercer certo poder de influência sobre o Hezbollah haverá a possibilidade de, numa suposta futura negociação de paz, Assad incluir a devolução das Colinas de Golã como pré-requisito. Por outro lado, Lahoud também encontra-se de mãos atadas no que tange à discussão acerca do sistema político confessional libanês. Se, em 1932, o Censo populacional apontava para uma pequena maioria de cristãos sobre os muçulmanos (52% contra 48%, respectivamente), essa relação mudou-se drasticamente e, nos dias de hoje, temos mais de 65% da população libanesa formada de muçulmanos. Entretanto, a participação da comunidade muçulmana, principalmente a xiita, no sistema político continua limitada. Assim, para que a discussão acerca dessa disparidade não ganhe força, Lahoud, e a comunidade cristã libanesa, preferem distanciar-se das ações do Hezbollah e considerá-las legítimas. Estabelece-se, dessa forma, o jogo dos desentendidos. O Hezbollah continua agindo legalmente como partido político e milícia, sem questionamentos do Estado, e, em contrapartida, o sistema confessional continua sendo apenas discutido, sem necessidade de avanços efetivos.
Se ousarmos abrir a lente do conflito ainda mais, perceberemos a presença do Irã em solo libanês. Não da mesma forma que os sírios, mas na ideologia – islamismo – dos xiitas do Hezbollah. A difusão do islamismo ganhou ainda mais força com o financiamento dos projetos sócio-religiosos do Hezbollah no sul do Líbano, Vale do Bekaa e subúrbios de Beirute. Com a ausência do Estado nessas localidades o Hezbollah criou sua rede assistencial – muitas vezes também utilizada por outros grupos religiosos – e, com isso, conquistou um outro tipo de legitimidade mais difícil de ser questionada, aquela atribuída diretamente pelo povo.
Num cenário complexo como o libanês, onde questões como o uso do termo nação tem de ser empregado com algumas reservas e que a presença islamista ainda tenta encontrar seu espaço na sociedade e na política, a re-inserção de Israel no Líbano parece ter sido um crasso erro estratégico. Quando Ehud Olmert deu a ordem para invadir o Líbano, talvez não soubesse que traria, agregado a ela, o passaporte para o atoleiro libanês – como era conhecida a situação do Líbano durante a Segunda Guerra Civil, entrar era fácil, difícil era sair.
Se o intuito de Olmert era reaver os corpos dos soldados israelenses, ainda não conseguiu. Se seu objetivo era destruir as bases lançadoras de mísseis do Hezbollah e acabar com o poder de fogo da organização, também não é possível afirmar que tenha alcançado pleno êxito a ponto de desarticulá-la. Se a intenção do primeiro-ministro israelense era fazer com que a população libanesa repudiasse o Hezbollah, o efeito pode ter sido inverso, fortaleceu seu reconhecimento como Resistência. Se Olmert pretendia obter o aval da comunidade internacional em sua estratégia, suscitando o direito de revidar a uma agressão, também não foi feliz nessa questão, tamanha a desproporcionalidade de sua reação.
Parece que Olmert não considerou a trajetória de Ariel Sharon ao optar pelo ataque ao Líbano. Sharon levou 18 anos para conseguir sair do atoleiro libanês, mesmo assim não podemos dizer que tenha conseguido fazê-lo completamente[iv]. Olmert deveria ter aprendido com essa lição e optado por caminhos menos desgastantes para alcançar seus objetivos – por mais obscuros que possam ser.
O resultado final, mas não definitivo, desse imbróglio é um Líbano destruído, sua população valorizando a bravura do Hezbollah e Israel sem saber o que fazer a seguir. De fato, parece que o único ator que saiu bem na foto foi o Hezbollah, apesar de estar com os pés sujos de lama.

* Bacharel em Relações Internacionais (FASM), Mestrando em História (FFLCH-USP) e membro da ADI-FASM.

Bibliografia
DEL PINO, Domingo. A Tragédia do Líbano: retrato de uma guerra civil. São Paulo: Editora Clube do Livro, 1989.
JABER, Hala. Hezbollah, born with a vengeance. New York: Columbia University Press, 1997.
SAAD-GHORAYEB, Amal. Hizbu’llah – Politics and Religion. London: Pluto Press, 2002.

[i] Os enfretamentos militares entre grupos religiosos distintos em várias localidades do Líbano, durante o ano de 1958, acabaram sendo considerados como a Primeira Guerra Civil Libanesa. Esses conflitos foram contidos com a interferência dos Estados Unidos, aliados dos cristãos maronitas que ocupavam a presidência do Líbano na ocasião. Para tanto, o apoio estadunidense foi suscitado com base na ‘Doutrina Easenhower’.
[ii] A primeira Resolução do Conselho de Segurança com essa finalidade foi a nº 425, de 1978.
[iii] O mandato de Lahoud deveria encerrar-se em 2004, sem direito à reeleição – conforme estabelece a Constituição –, entretanto, graças à pressão exercida pelo governo sírio sobre o Parlamento libanês houve a aprovação de uma emenda constitucional que estendeu seu mandato por mais três anos, ou seja, até 2007.
[iv] Apesar de a ONU reconhecer que o Estado de Israel cumpriu a Resolução 425 e abandonou completamente o Líbano, o Hezbollah alega que ainda vai continuar lutando pela soberania do país uma vez que a região conhecida por Shebaa Farms ainda encontra-se sob domínio israelense. Por sua vez, Israel alega ter conquistado tal região da Síria, durante a Guerra dos Seis Dias (1967). A Síria não reconhece Shebaa Farms como sendo sua propriedade e o governo libanês reclama seus direitos, assim, reforça-se o sentido de legitimidade da luta do Hezbollah contra Israel pelo restabelecimento da soberania territorial do Líbano.