Thursday, March 05, 2009

HEZBOLLAH, ISRAEL E TERRORISMO: A "FÓRMULA MÁGICA" DA MÍDIA

Revista PJ:BR - Jornalismo Brasileiro
Edição nº 11 - Ano 07, Fevereiro/2009 ISSN 1806-2776
Disponível em: http://www.eca.usp.br/pjbr/arquivos/artigos11_b.htm
Por Renatho Costa*

RESUMO

Seria estranho, se não fosse pelo emprego de uma nova tática de ação, que uma organização islâmica fundamentalista como o Hezbollah tivesse se tornado tão famosa no âmbito regional do Oriente Médio quanto no Ocidente.
Apesar de sua grafia adventícia para os padrões ocidentais e de contemplar um significado complexo, haja vista sua tradução literal ser “Partido de Deus” e esse ser um dos versos do sagrado Corão [1] – que conclama a população islâmica para fazer parte do “Partido de Deus” –, o Hezbollah é conhecido, admirado e odiado por muitos.
Que tática teria sido essa para uma organização nascida no princípio da década de 1980, com um país – Líbano – atolado numa guerra civil e que dizimou parte de sua população [2] alcançar esse status?

PALAVRAS-CHAVE: Internacional / Discurso Jornalístico / Análise de Conteúdo

1. O meio ideal para a propagação do terrorismo


Uma resposta possível para essa questão poderia estar ligada diretamente ao que se convencionou chamar de terrorismo. Tática essa escolhida pelo Hezbollah para colocar em prática na luta por seus objetivos. Independentemente da legitimidade de sua causa, o que caberia até uma análise mais profunda, a partir do momento que o Hezbollah passou a colocar em prática ações terroristas contra o Estado de Israel, os inimigos maronitas etc., conseguiu obter um ganho substancial de status múltiplo, ou seja, perante os movimentos políticos árabes e islâmicos e, concomitantemente, no seu relacionamento com os atores políticos internacionais, de modo geral.

Por outro lado, o reconhecimento do Hezbollah como organização detentora de grande potencial “de fogo” só foi alavancado porque existe um terceiro ator nessa história conhecido por mídia. E, sem sombra de dúvidas, ela necessita de novidades para sobreviver e o Hezbollah conseguiu alimentá-lo por muito tempo. Assim, talvez possamos concluir que, grande parte do status adquirido pelo Hezbollah se deveu às inúmeras manchetes que ganhou nos principais jornais e revistas do mundo, quando colocou em prática as suas ações terroristas.

Quando chegamos a esse ponto do desenvolvimento desse raciocínio somos obrigados a parar e analisar mais profundamente o que vem a ser terrorismo e se a mídia tem, de fato, alguma responsabilidade quando se torna a maior divulgadora dos fatos. Por outro lado, quando atribuímos a uma determinada organização a classificação de terrorista, estamos determinando exatamente o que vem a ser, ou a utilização desse termo atende a interesses outros?
Assim, quando analisamos a tática que as organizações terroristas utilizam para disseminar o terror e, conseqüentemente, fazer com que suas causas alcancem os objetivos propostos, logo nos deparamos com o paradigma do terror. Esse modelo consiste, basicamente, em atacar o seu adversário – ou um de seus aliados que exerça algum tipo de influência sobre o primeiro – no intuito de abalá-lo psicologicamente e, ao mesmo tempo, fazer com que outras pessoas saibam que existe alguém (ou alguma organização) que luta por uma causa específica.

E, para que tenhamos especificamente uma ação terrorista, essa causa deve ter uma finalidade política. Caso contrário, apesar de estarmos diante do emprego da violência, não poderíamos classificá-la como terrorismo, mas sim outro tipo de crime qualificado.

Nesse sentido, a divulgação das ações terroristas acaba sendo imprescindível para o fortalecimento das organizações, uma vez que reverte em mais adeptos para a causa. Por outro lado, quando se opta por utilizar a tática terrorista, automaticamente subentende-se que o objetivo da ação não está ligado diretamente à destruição do alvo atingido. Não se explode um ônibus repleto de crianças porque pretendia, simplesmente, eliminá-las.

Ao explodir um ônibus e matar dezenas de passageiros, pretende-se, com isso, desestabilizar toda a população local e fazer com que ela se sinta vulnerável. Assim, pretende-se que as reivindicações políticas da organização sejam mais facilmente aceitas, ou negociáveis. No entanto, nem sempre essa ação terrorista intimida e leva à negociação, existe uma terceira possibilidade que, muitas vezes, gera o recrudescimento do ator afetado pela ação.

Exemplo dessa postura podemos encontrar no caso dos atentados palestinos contra o Estado de Israel, ali, o resultado acaba sendo o endurecimento das ações do governo através da eleição da Direita, que, por sua vez, avessa a qualquer tipo de negociação com organizações terroristas, acaba combatendo-as com mais dureza e, como efeito colateral, atingindo a população. Whittaker, ao citar Martha Crenshaw, enfatiza outros aspectos do terrorismo que acabam por repercutir nas sociedades assim que os atentados são praticados:

Uma razão para o poder do terrorismo como rótulo político, e daí para a controvérsia que suscita, não é só sua utilidade, mas também o seu apelo simbólico. O terrorismo adquiriu um valor político que pode sobreviver aos fracassos estratégicos de curto prazo. Ele persiste malgrado os resultados negativos. Projeta imagem, comunica mensagens e cria mitos que transcendem as circunstâncias históricas e motivam gerações futuras. Tais mitos podem ser, é óbvio, enganadores ou contraditórios. (...) É verdade que muito terrorismo (em especial nas suas formas mais discriminadoras) pode gerar admiração pela ousadia e repúdio pela crueldade. É fácil para o terrorismo se transformar no gume de um movimento e definir uma ideologia. Inegavelmente, ele detém uma aura de glamour perversamente trágico (Cf. 2005, p. 34).

Utilizado a terminologia de Crenshaw, é na “aura de glamour perversamente trágico” que reside a atuação da mídia. Ela tem o poder de propagar o efeito das ações e dos fatos, fazendo com que eles alcancem objetivos diversos. A mídia, devido ao seu poder, pode fortalecer uma causa ou esvaziá-la.

No entanto, como a mídia necessita de novidades a cada dia, e as organizações terroristas oferecem manchetes chamativas para os jornais impressos e televisivos, acabamos sendo obrigados a nos reportar à observação de Crenshaw (citada acima) para explicar esse fascínio, “(...) é verdade que muito terrorismo pode gerar admiração pela ousadia e repúdio pela crueldade”, mas é essa polêmica que eleva os índices de audiência e aumenta a tiragem dos jornais.

Excluindo dessa análise os factóides, é através dessa exposição na mídia que se torna possível trazer à tona as questões pelas quais as organizações se empenham e possibilitar que a opinião pública nacional, assim como internacional, tomem partido. Conseqüentemente, acaba-se por perceber que a divulgação das ações executadas pelas organizações, e mesmo por Estados que utilizaram táticas terroristas para conter ou disseminar o “terror”, alcança um espaço cada vez maior na mídia internacional.

2. Quem aterroriza quem?

No caso específico da questão Líbano/Israel/Hezbollah, é possível afirmar que a mídia desempenhou um papel de extrema importância ao divulgar as ações que pontuaram a trajetória dos conflitos. Apesar dessa reconhecida importância, também deve ser considerado que nem sempre os fatos foram expostos em todas as suas nuances.

Muitas vezes optou-se por reforçar um acontecimento em detrimento de outro. Isso porque os veículos de comunicação estão envolvidos de tal maneira com causas e ideologias que se torna difícil encontrar uma análise isenta.

O próprio Hezbollah, desde cedo, percebeu que deveria utilizar a mídia para fazer com que os libaneses pudessem conhecer ainda mais a causa pela qual lutava, ou seja, a criação de um Estado islâmico, aos moldes do Irã; no entanto, essa causa acabou sendo flexibilizada e o mote principal de sua luta tornou-se a restauração da soberania do país e, consequentemente, a luta contra o Estado de Israel.

Se, por um lado, a criação de um Estado Islâmico abrangia apenas um segmento restrito da população, mais particularmente os seguidores do Hezbollah, por outro lado, com a luta focando a restauração soberania do país, a causa tornou-se libanesa. Apesar de entendermos que o Hezbollah parte de uma proposta fundamentalista, que visaria expurgar todos os elementos intrinsecamente ligados ao Ocidente, a questão relativa à mídia foi deixada de lado. [3]

Essa exceção ao tratar das questões ligadas à tecnologia gera certa desestabilidade na proposta fundamentalista da organização. O questionamento que se faz é simples: atribui-se ao Ocidente a falência da cultura islâmica e parte-se de uma proposta fundamentalista em que tudo o que é relacionado a ele deve ser condenado, como utilizar-se logo da mídia, que tem forte apego com o Ocidente? Por que, então, deve-se utilizar um elemento do Ocidente e outro não, qual seria o critério?

Não é só na questão relativa à mídia que se vê a abertura de precedentes dentro das organizações islâmicas fundamentalistas – prontamente poderíamos elencar outras, tais como a utilização do sistema financeiro internacional, equipamentos militares, informática etc. –, entretanto, esse “instrumento” fez com que se alargasse o front de batalha e potencializasse a luta.

Por outro lado, o fundamentalista mantém uma autocrítica sobre o seu procedimento com relação ao Islã e, segundo Bernard Lewis,

Os fundamentalistas muçulmanos [...] não diferem da corrente dominante em questões de teologia e interpretação dos textos sagrados. Sua crítica, em sentido mais amplo, é relativa a toda a sociedade. O mundo islâmico, na opinião desses fundamentalistas, tomou um caminho errado. Seus governantes chamam a si mesmos de muçulmanos e fingem ser o Islã, mas são, de fato, apóstatas que aboliram a Lei Sagrada e adotaram leis e costumes estrangeiros, infiéis. A única solução, segundo eles, é um retorno ao autêntico modo de vida muçulmano, e, para isso, a remoção dos governos apóstatas é um primeiro passo essencial. Os fundamentalistas são antiocidentais no sentido de que vêem o Ocidente como a fonte do mal que está corroendo a sociedade muçulmana, mas seu primeiro ataque está dirigido contra seus próprios líderes e governantes (ex. Xá do Irã em 1979 e Sadat, no Egito, em 1981) (Cf. 2004, p. 40). (Grifos do autor).

Para propagar essa luta contra o Ocidente e os apóstatas do Islã, hoje, o Hezbollah mantém um Departamento de Relações Midiáticas (também conhecido por “Unidade de Informação”) que está ligado, diretamente, ao Conselho Executivo do Partido. Ele é o

[...] responsável pela divulgação da propaganda política do Hizbullah. Possuindo uma rede de televisão (al-Manar), quatro estações de rádio (al-Nour, al-Iman, al-Islam e Sawt al-Mustad’afin) e cinco jornais (al-Ahd, a-Bilad, al-Muntalaq, al-Sabil e Baqiatou Allah), algumas sem autorização oficial do governo para funcionar [além de uma revista com publicação mensal chamada Qubth Ut Alla e um website próprio], [esse departamento] caracteriza-se por ter a maior estrutura de comunicação dentre os demais partidos políticos. Durante a ocupação israelense [1982-2000] a rede de televisão al-Manar teve papel de grande relevância para os membros da Resistência ao divulgar mensagens em favor da luta e tentar desmoralizar o Estado de Israel exibindo fotos de seus soldados capturados ou mortos pela Resistência. Mantida por fundos iranianos, donativos de muçulmanos expatriados e por grande quantidade de anúncios comerciais, a ­al-Manar opera com milhões de dólares e possui mais de dez milhões de espectadores. Seu sinal é retransmitido para a África, Europa, América do Norte e América latina, com boletins em inglês e francês. Com o fim da invasão israelense ao Líbano (2000), a rede de televisão passou a dedicar-se a outra causa: apoiar a intifada palestina (Cf. Costa, 2006, p. 189).

O carro-chefe dessa estrutura de comunicação é a TV Al-Manar (que opera por satélite), e, apesar de ela não poder ter a sua estrutura comparada às grandes redes de televisão ocidentais, para o fim a que foi criada, conseguiu desempenhar perfeitamente a função.

3. A estreita e conflituosa legitimidade

Outro aspecto que demanda parcimônia ao discutirmos as ações terroristas e a maneira com que a mídia aborda o tema, diz respeito à legitimidade da luta na qual o Hezbollah se envolveu. Talvez o grande mérito da organização tenha sido encontrar respaldo justamente na dificuldade de conceituação do que é legítimo, ou não, perante a comunidade internacional. Isso porque a legitimidade pressupõe uma uniformidade cultural e de procedimentos, fato esse que não ocorre entre o Islã e o Ocidente – pelo menos não se pode fazer tal afirmativa de maneira generalizadora.

Nesse conflito conceitual, o Hezbollah percebeu que alcançar a legitimidade política para uma causa nem sempre é algo simples, ou seja, por mais que existam determinados procedimentos que sejam aceitos mundialmente por organismos internacionais, nem sempre são consensuais.

E, perante a ausência de definição entre legítimo e ilegítimo para o Ocidente, além da divergência cultural (Ocidente versus Islã), o Hezbollah conseguiu aproximar a sua causa de outras semelhantes respaldadas pelos ocidentais. Ainda, pôde contar com a legitimidade de sua causa já reconhecida pela população xiita libanesa, a qual se manteve fiel a ela e à maneira pela qual a organização optou por pautar sua lutar.

Assim, com a ausência de uma normatização que suplante a legislação interna do Estado, o próprio conceito de legitimidade não é tão facilmente empregado no sistema internacional como o é no âmbito nacional. Disso chegamos a outro questionamento: Entendendo-se que, muitas vezes, a legitimidade está intimamente ligada aos costumes em vigor num determinado período histórico e que quem acaba por ditá-los são os atores que exercem hegemonia sobre o sistema internacional, a análise de uma causa, a partir desse critério, não deve se ater, somente, ao fato em si, mas às questões subjacentes.

Deve-se perguntar: é legítimo por que e para quem? A situação em análise possui similaridade com outras que obtiveram a mesma classificação? Desses questionamentos básicos pode-se partir para uma análise mais aprofundada e verificar se há isenção ao atribuir-se o caráter de legítimo ou ilegítimo a uma luta/causa.

A luta impetrada pelo Hezbollah, primeiramente calcada na retomada da soberania territorial libanesa e, depois, voltada contra a existência do Estado de Israel, apresenta-se como uma perfeita amostra de análise. Isso porque, muitos jornais e revistas noticiaram as inúmeras fases dos conflitos.

Assim, através de uma breve coletânea de reportagens sobre os principais fatos e personagens dos conflitos, procurar-se-á apresentar como a mídia percebeu os atores e como houve alteração de seus perfis ao longo do tempo.

Como não poderia deixar de ser, o Brasil também destinou várias páginas sobre o assunto em seus principais jornais e revistas, que também estarão contidas nesse panorama. Essa proposta de mostrar o que a imprensa noticiou e o que os atores principais dos conflitos disseram em suas inúmeras entrevistas nos meios de comunicação servirá de contraponto para entender como o Hezbollah alcançou notoriedade e como traçou sua trajetória para alcançar seus objetivos.

4. Sharon assume as manchetes, Hezbollah em concepção

Dentre as inúmeras barbáries que aconteceram no Líbano durante o período da Guerra Civil (1975-90), o ano de 1982 ficou marcado pela ação militar israelense “Operação Paz para a Galiléia” e pelo massacre ocorrido em dois campos de refugiados nas proximidades da cidade de Beirute. Sob a liderança de Ariel Sharon, Israel adentrou em território libanês, alcançou a capital do país e a manteve sitiada.

A motivação para tal ação foi expulsar a OLP de Beirute e cessar seus ataques ao norte de Israel. O objetivo foi alcançado; contudo, a passividade dos militares israelenses diante da ação da milícia cristã (Falange) dentro dos campos de refugiados de Sabra e Shatila trouxe à tona uma faceta de Israel que o mundo passaria a condenar e que levaria o líder da invasão a responder perante a comunidade internacional e também internamente (em Israel).

Manchetes de jornais e revistas por todo o mundo estamparam a palavra massacre e ressaltaram a importância da imprensa para impedir que a ação fosse ainda mais trágica. O massacre de mais de 2000 refugiados palestinos durou três dias e, somente foi interrompido porque alguns jornalistas conseguiram adentrar aos campos de Sabra e Shatila e passaram a enviar notícias para seus jornais sobre o que acontecera no Líbano entre 16, 17 e 18 de setembro.

Robert Fisk, jornalista britânico que cobriu a Guerra Civil libanesa para o jornal The Independent, posteriormente publicou o livro Pity the Nation, no qual fez aanálise de um dos períodos mais sangrentos da história contemporânea. No transcorrer de seus relatos, apresentou a impressão que teve sobre Sabra e Shatila.

Eles [palestinos] estavam em toda parte, na estrada, na pista, no quintal e nos cômodos destruídos, de baixo da alvenaria demolida e espalhados do lado de fora do lixo. Os assassinos – os milicianos cristãos que Israel tinha permitido entrar no campo para ‘por para fora os terroristas’ – tinham acabado de sair. Em alguns casos o sangue ainda estava molhado no chão. Quando vimos uma centena de corpos, paramos de contar. Havia corpos – mulheres, jovens, bebês e idosos – caídos em todas as vias; deitados juntos, numa preguiçosa e terrível profusão em que foram esfaqueados e metralhados até a morte. Cada corredor através do entulho produzia mais corpos. Os pacientes do hospital palestino tinham desaparecido depois que o atirador ordenou ao médico que deixasse o lugar. Em toda parte nós encontramos sinais de covas coletivas escavadas apressadamente. Talvez umas mil pessoas tenham sido chacinadas; provavelmente metade daquela quantidade, novamente (Cf. 2001, p. 359-60).

Um dos desdobramentos desse evento se deu na tentativa de responsabilizar Ariel Sharon pelo massacre de 1982 e, para tanto, moveu-se um processo internacional [4] que visa fazer com que o ex-primeiro-ministro seja penalizado por sua ação (ou ausência dela) em Sabra e Shatila.

De fato, com a “Operação Paz para a Galiléia”, Israel conseguiu alcançar seus objetivos, porém, a solução acabou sendo apenas temporária e não evitou a ação de “homens-bomba”, iniciada em 1983, contra alvos israelenses. A partir daí o terrorismo passaria a “enfeitar” as manchetes da história libanesa.

5. Hezbollah terrorista?

A partir da sua criação oficial, em 1985, o Hezbollah passou a ser considerado um grupo terrorista pelos países ocidentais. Com isso, atraiu, cada vez mais, a atenção da mídia. Seqüestros, explosões, atentados etc., tornaram-se freqüentes no Líbano.

Evidentemente que o Estado de Israel retaliava tais ações com o mesmo expediente, ou utilizando seu poderio militar superior para tentar conter o crescimento do Hezbollah.

Da diferença na classificação dos atores executores das ações (Hezbollah é uma Força Paramilitar e Israel, um Estado), também obtemos uma diferença conceitual em sua classificação, qual seja, Israel estaria colocando em prática o Terrorismo de Estado. E, a partir do princípio de que um Estado tem a obrigação de defender a sua população de ameaças internas e externas, teria respaldada a sua tática terrorista.

Evidentemente que o Estado de Israel não assume ser e/ou utilizar de tática terrorista em suas ações, porém, em muitos aspectos as retaliações programas pelo exército de Israel podem se consideradas desproporcionais ou mesmo terroristas.

O grande diferencial nessa luta do Hezbollah contra o Estado de Israel se dava na prática de ações com “homens-bomba”, e, na tentativa de justificar o seu uso e legitimar a causa da organização xiita. Na entrevista concedida pelo Aiatolá Mohamed Hussein Fadlallah à revista Time, em 1996, três meses antes da “Operação Vinhas da Ira”, o líder religioso mesclava conceitos ocidentais que legitimariam a luta pela defesa da soberania libanesa com a advocacia do uso do jihad como legítima dentro do Islã.

Uma flamejante defesa da jihad pelo clérigo xeque Mohammed Hussein Fadlallah

Lara Marlowe; Xeque Mohammed Hussein Fadlallah

Time: Como um Partido de Deus – ou um homem de Deus – sanciona o uso da violência para finalidade política?

Fadlallah: O Corão nos diz, Se você tem uma chance, use a não-violência para transformar os seus inimigos em amigos. Mas se seu destino e liberdade estão em jogo, se alguém ocupa o seu país e você não pode colocar fim à ocupação através de meios não-violentos, então a ocupação é uma violência praticada contra você… Nós não somos pregadores da violência. A Jihad, no Islã, é um movimento defensivo contra aqueles que impõem a violência.

Time: O Hezbollah é considerado um movimento terrorista pelo governo dos Estados Unidos. Ele é?

Fadlallah: Eu acho que não, se ele é acusado de ser terrorista é por causa das ações da Resistência Islâmica no sul do Líbano. Todos aqueles que resistem estão lutando pela sua liberdade, sua terra e seu povo, exatamente como os americanos lutaram contra o colonialismo e como os franceses lutaram contra a ocupação nazista. A presença israelense no Líbano não é legítima, é uma ocupação. A Resolução 425, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, demandou pela retirada incondicional de Israel. Os mujahedin do Hezbollah estão exercendo seu direito de lutar contra uma força de ocupação.

Time: Qual será o resultado do processo de paz no Oriente Médio?

Fadlallah: A América quer exercer total dominação sobre o Oriente Médio, e quer que Israel se torne parte integral dessa região. Mas isso não acontecerá, necessariamente. Há um verso no Corão que diz, “Um dia está a seu favor, Um dia está contra você”. [5]


Das palavras de Fadlallah podem ser tiradas algumas conclusões: primeiramente de que o Hezbollah tenta buscar legitimidade para sua luta contra Israel aproximando-se dos movimentos libertários históricos no que tange à analogia das situações vividas por eles (todos lutarem pela restauração da soberania) e nos métodos utilizados para alcançar os seus objetivos. Dessa forma, o Hezbollah obteria grande simpatia perante a opinião pública internacional.

Em segundo lugar, ao afirmar que Israel não se tornará parte da região abrangida pelo Oriente Médio estaria buscando a legitimidade para sua luta junto aos demais grupos/Estados árabes/islâmicos inimigos de Israel. Com isso chegamos è terceira constatação: de que a busca pela legitimidade ocidental possa ser apenas pragmática e, assim que houver uma convergência de fatores, a proposta fundamentalista prevalecerá.

Independentemente da fragilidade ou dubialidade do discurso do Hezbollah, sua causa acabou sendo transmitida através da cobertura da mídia. E, por mais que houvesse a vinculação entre Hezbollah e terrorismo, o Estado de Israel acabou sendo percebido por uma parte considerável da opinião pública como Estado Terrorista por não medir a intensidade de suas ações.

Depois de Sabra e Shatila, muitos veículos da imprensa mundial – as revistas Times e Newsweek, os jornais The Washington Post, The Independent, The Guardian, Le Monde etc. – voltaram a conferir a Israel o título de terrorista quando, em 1996, durante sua nova incursão ao Líbano (“Operação Vinhas da Ira”), bombardeou a cidade de Qana e provocou a morte de uma centena de refugiados.

O governo de Israel tentou apresentar seus argumentos para justificar o bombardeio que ocorreu na cidade libanesa por aproximadamente meia hora e que resultou no repúdio da imprensa internacional. Segundo as autoridades israelenses, o bombardeio teria sido um erro de cálculo, uma falha de alvo. Em tese, nada impediria que tal procedimento tivesse ocorrido, ou seja, um erro. Talvez, até, considerar a ação como um crime de guerra, no entanto, também abre a perspectiva para se classificar a ação como um ato terrorista que intencionava gerar terror na população libanesa e fazer com que cessasse o apoio ao Hezbollah.

A “Operação Vinhas da Ira” acabou ganhando ampla cobertura pela imprensa nacional também e, a revista Veja atribuiu uma manchete bastante peculiar ao evento de Qana. Relacionando a tragédia que o povo judeu viveu durante a Segunda Guerra Mundial com o bombardeio à Qana, estampou em suas páginas “Holocausto Libanês”.

Holocausto libanês
Massacre de civis em abrigo de refugiados da ONU expõe a barbárie da agressão israelense ao Líbano e coloca em risco o processo de paz no Oriente Médio

Muitos libaneses acreditam que Qana (pronuncia-se ‘Caná’), uma cidadezinha próxima à fronteira com Israel, é a bíblica Canaã, onde Jesus transformou água em vinho. A Canaã de verdade fica bem ao sul, na Galiléia. Na semana passada, o lugarejo, que desde 1978 abriga uma base das Nações Unidas destinada a acolher refugiados de guerra, ganhou finalmente seu lugar na História, mas o fato que tornou célebre nada tem a ver com água ou vinho, e sim com outro tipo de líquido – o sangue.
Às 13h55 da quinta-feira passada, oitavo dia da operação militar de Israel em território libanês intitulada Vinhas da Ira, o abrigo da ONU foi submetido a um implacável bombardeio. Sem aviso prévio, obuses israelenses começaram a cair sobre o conjunto de barracões onde 250 civis libaneses imaginavam estar seguros, sob a proteção da bandeira azul das Nações Unidas.
Estavam enganados. A aldeia de Qana entrou para a História ao lado de lugares como Guernica, cujo holocausto sob as bombas da aviação nazista na Guerra Civil Espanhola inspirou o quadro mais famoso de Picasso. Depois de meia hora de bombardeio, a base da ONU estava coberta de cadáveres – 101, pela contagem do governo libanês. Todos civis, com exceção de quatro capacetes-azuis que vieram das distantes ilhas Fiji, no Pacífico, para perder a vida no Líbano.
Os jornalistas que chegaram ao local minutos depois da tragédia descreveram um cenário de horror e desespero. Robert Fisk, premiado correspondente do The Independent, de Londres, viu pilhas de pessoas caídas no chão, com as mãos, braços ou cabeças decepados. “Desde Sabra e Chatila eu não havia visto uma matança tão grande de inocentes”, escreveu Fisk, numa alusão ao maior massacre do conflito libanês, o dos palestinos de dois campos de refugiados, trucidados, às centenas, em 1982, por milicianos cristãos com a conivência das tropas israelenses que ocupavam Beirute.
(...)
A opinião pública internacional, que tinha voltado a cultivar uma imagem positiva do Estado judaico graças aos acordos de paz com Yasser Arafat e, mais recentemente, à condição de vítima de atentados que mataram 58 pessoas, voltou a ver Israel no papel de agressor.
Nada disso dissuadiu o governo israelense. Os ataques têm como alvo declarado o Hezbollah, milícia xiita que, nas últimas semanas, disparou várias salvas de foguetes katiusha contra o norte de Israel. Ninguém questiona o direito de um país à segurança. Mas, daí a exercer esse direito chacinando, é inadmissível.
(...)
A retórica israelense de legítima defesa não resiste aos números. Do início dos bombardeios no Líbano, no dia 11, até a manhã do último sábado, já haviam morrido 154 libaneses, comparados aos doze israelenses mortos pelos antiquados rojões do Hezbollah em catorze anos. A título de erradicar a milícia xiita, que não possui mais do que 300 homens em armas, Israel despejou uma tempestade de bombas sobre o Líbano, provocando o êxodo de 400.000 pessoas.
(...)
A Operação Vinhas da Ira tem outro motivo, além do oportunismo eleitoral. O objetivo da pressão militar israelense é convencer a Síria, que manda no Líbano e lá mantém 35.000 soldados, a desarmar o Hezbollah. Só depois que a milícia xiita estiver neutralizada, explica Peres, é que Israel decidirá se deve iniciar negociações para uma retirada da faixa de 15 quilômetros que ocupa ilegalmente em território libanês, em despeito às Resoluções da ONU. A exigência é inaceitável para a Síria, e também para o Líbano.
Para romper o impasse, Peres está usando uma tática delirante, inaugurada pelo presidente americano Richard Nixon na Guerra do Vietnã – submeter seus inimigos a um bombardeio apocalíptico, até que eles se mostrem mais flexíveis à mesa de negociações. Essa tática, conhecida como “teoria do homem louco”, é que explica a opção preferencial dos israelenses pelos alvos civis. (...) Como tática pode até funcionar. Mas as sementes do ódio, lançadas no solo fértil do Oriente Médio, só podem gerar violência. As Vinhas da Ira prometem uma safra amarga. [6]


Novamente, Líbano, Israel, Hezbollah e terrorismo se mesclavam e a mídia conseguia atrair a atenção do mundo para aquele evento.

6. E agora, sem o arquiinimigo?

Em 2000, após dezoito anos de ocupação, o Hezbollah conseguiu fazer com que a milícia apoiada por Israel (SLA, South Lebanon Army, “Exército do Sul do Líbano”) se desintegrasse e propiciasse a retirada do exército israelense da “Zona de Segurança”. [7]

No turbilhão de acontecimentos que catapultou o Hezbollah à classificação de único “exército” a impingir derrota ao Estado de Israel, Hassan Nasrallah (atual Secretário-Geral do Hezbollah), como grande líder, pronunciava-se com bastante veemência a respeito das táticas que deveriam ser utilizadas na luta contra os israelenses e que poderiam reverter em sucesso. Suas declarações foram estampadas na reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, de 29 de outubro de 2000, cinco meses após a retirada israelense.

Hezbollah pede ataques suicidas contra Israel
Líder da guerrilha xiita libanesa diz que palestinos têm de enfrentar o ‘inimigo sionista' com ‘armas verdadeiras'

BEIRUTE - O líder da guerrilha xiita libanesa Hezbollah, xeque Hasan Nasralah, exortou ontem os palestinos a realizar atentados suicidas contra Israel "se quiserem derrotar o inimigo sionista". "É inaceitável que os palestinos continuem combatendo com pedras em vez de utilizar armas verdadeiras para derrotar o inimigo", discursou Nasralah num pronunciamento por meio da emissora de TV de seu grupo.
A declaração do xeque ocorre dois dias depois de um membro do grupo integrista palestino Jihad Islâmica ter realizado um ataque suicida contra uma posição do Exército israelense em Gaza.
"As operações conduzidas por mártires palestinos são o meio mais eficaz para enfrentar os sionistas, pois produzem um impacto moral e material sobre o inimigo e o submerge no terror", acrescentou Nasralah. "Se os combatentes da Jihad dispuserem de meios materiais mais importantes, o inimigo e o mundo serão testemunhas do aumento dos ataques, que repercutirão sobre a situação e determinarão o destino da batalha."
Ao mesmo tempo, em Gaza, a situação era tensa ontem por causa do enterro de Jabber al-Mishal, morto por soldados israelenses na véspera, durante os protestos do "Dia da Ira". Outros três palestinos morreram durante as mesmas manifestações.
"Vingança, vingança!" e "(Ehud) Barak prepare seus caixões!", gritavam os manifestantes que participavam do funeral.
O Dia da Ira é um protesto que se vem repetindo toda sexta-feira há um mês.
Nos confrontos abertos com a visita do direitista israelense Ariel Sharon e cerca de mil soldados a uma mesquita de Jerusalém Oriental, já morreram 137 pessoas - das quais, 129 eram árabes.
Segundo a Rádio Israel, três ônibus israelenses foram incendiados por palestinos na cidade de Erez, na Faixa de Gaza e um grupo de soldados israelenses foi atacado por militantes árabes armados na aldeia palestina de Bet Sahur, ao sul de Jerusalém.
Por outro lado, agentes da polícia palestina transferiram a seus colegas israelenses o cadáver de um jovem que estava no interior de um veículo incendiado perto da cidade de Ramallah, na Cisjordânia. Segundo a emissora de Israel, pode tratar-se do cadáver de um cidadão israelense desaparecido há mais de uma semana. (Reuters, Associated Press, France Presse, EFE, DPA e Ansa). [8]


A retirada de Israel de territórios libaneses não significou, contudo, a resolução para os problemas na região. Isso porque, os desentendimentos entre Israel e Síria, no que diz respeito às Colinas de Golã, ainda não foram resolvidos, e, como o Hezbollah também é simpatizante da Causa Síria, a deposição de armas perpassará por muita negociação.

Com o fim da presença israelense no Líbano, muitos poderiam imaginar que a imprensa internacional se afastaria e os problemas locais seriam tratados apenas no âmbito regional, porém, como o Hezbollah sempre utilizou a mídia para se sustentar e vice-versa, a organização xiita não quis enfraquecer a legitimidade de sua luta pela soberania territorial libanesa e recusou-se a depor as armas enquanto Israel não abandonasse completamente o Líbano, ou seja, deveria deixar uma pequena faixa de terras conhecida por Fazendas de Shebaa, na fronteira com a Síria.

A alegação do Hezbollah buscava fundamentação no fato de que as Fazendas de Shebaa nunca pertenceram à Síria e foram conquistadas, indevidamente, por Israel, em 1967, juntamente com as Colinas de Golã. A Síria, por sua vez, ratificara o argumento do Hezbollah e declara que a área não lhe pertencia, mas sim, ao Líbano.

Em foco: as fazendas de Shebaa
Um grupo das fazendas perto da fronteira – pobremente definida –, entre Líbano e Síria emergiu como um novo ponto de combustão potencial para o conflito entre Israel e as guerrilhas muçulmanas libanesas.
O grupo de guerrilha apoiado pela Síria, Hezbollah, diz que Israel deve se retirar da área das fazendas de Shebaa – que elas encontram-se no território libanês – ou continuará com os ataques em sua cara.
Israel diz que a maioria das áreas fica do lado sírio da fronteira entre Líbano e Síria, e que só se retirará da parte marcada como território libanês que constarem nos mapas das Nações Unidas. O ministro da defesa israelense disse: “o exército pretende retirar-se de um ou dois postos menores”.
(...)
Negociações de fronteira
O Sr. Goksel disse que o assunto da fronteira seria um dos que o enviado da ONU, Terje Roed-Larsen, discutiria durante a sua visita à região, mas adicionou que a ONU não era "a autoridade para a marcação de fronteira".
A Síria concorda com o Líbano de que a área das fazendas de Shebaa é parte de Líbano. Entretanto, Israel indica que conquistou o território da Síria durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967.
O Sr. Goksel disse: “A ONU está afirmando que em todos os mapas que pôde encontrar as fazendas são vistas no lado sírio”.
As forças israelenses dinamizaram e retiraram-se de um posto militar conhecido como Astra, próximo das fazendas de Shebaa, na quarta-feira.
(...)
De acordo com a Rádio Israel, o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, disse que a retirada da região da área das fazendas de Shebaa foi designada “para eliminar do presidente sírio Hafez al-Assad qualquer desculpa que incentive ações terroristas do Hezbollah, a partir do Líbano, contra Israel”. [9]


A questão da real propriedade das terras em litígio não foi resolvida, porém, deve-se salientar o fato de que após a retirada de Israel do sul do Líbano, as Nações Unidas estiveram na região e ratificaram o cumprimento da resolução nº 425 – vinte e dois anos depois de ela ter sido decretada pela ONU, em 1978. Com esse impasse, o conflito continua vivo e a tensão apenas deixa de ser ininterrupta para tornar-se sazonal.

7. Um fim que não chega

Sem conseguir resolver a questão com o Estado de Israel, a mídia continua tendo muito apetite pelos eventos ocorridos na região, ainda mais quando, após 29 anos de presença síria no Líbano, a opinião pública internacional (alavancada pelos meios de comunicação), conseguiu fazer com que a “Revolução do Cedro” se tornasse realidade e expulsasse as forças militares sírias do território libanês.

Novamente, a fórmula mágica que atrai a atenção de toda a mídia internacional foi utilizada no Líbano, porém, com apenas uma variável. Ao invés de termos Líbano/Terrorismo/Israel, alteramos para Líbano/Terrorismo/Síria.

Rafiq Hariri [10] foi assassinado em 2005, com a explosão de uma bomba e, na seqüência presenciamos os fatos que levaram à retirada das tropas sírias do Líbano.

Fim dos 29 anos de presença síria no Líbano

Por Donna Abu-Nasr
Associated Press Writer

Hayy El-Ramel, Líbano (AP) – Logo que os caminhões de carga com soldados sírios partiram para casa, Mariam Majzoub iniciou a distribuição de tinta para apagar os últimos vestígios dos 29 anos da presença deles.
Seus filhos, sobrinhos, sobrinhas e vizinhos fincaram as bandeiras libanesas nos topos dos postos de controle, abandonados, próximos a sua casa, nessa pequena vila no Vale do Bekaa; jogavam água com cal nas paredes e celebravam a data de partida pintando, em verde: “Independência 2005, Domingo, 17 de Abril”.
“Nós começamos dançar nas ruas mesmo antes de eles contornarem a esquina," disse Majzoub, com seu rosto rechonchudo incandescendo como jóia. “Nós podíamos, finalmente, nos expressar e não havia nada que eles pudessem fazer sobre isso.”
A Síria concluiu suas três décadas de presença no Líbano no domingo, deixando para trás um pequeno grupo de tropas que comparecerá à cerimônia de despedida na terça-feira. Agora o Líbano tem de começar estabelecendo um novo relacionamento com seus vizinhos mais poderosos.
A Síria deixa para trás leais aliados que se beneficiaram de sua presença. Pelo menos até as eleições parlamentares que são esperadas para acontecer em 31 de maio. Seu plantel militar está livre para se mover entre os dois países. Mês passado, apenas algumas horas depois de os sírios evacuarem o quartel da Inteligência em Beirute, seu chefe apresentou-se do lado de fora do prédio como um sinal de que poderiam voltar quando quisessem.
Mesmo se um governo anti-sírio chegar ao poder, seus líderes estão hesitantes em tomar qualquer atitude que antagonize à Damasco, tal como iniciar uma negociação de paz com Israel.
Um prenúncio de uma possível instabilidade veio com cinco bombardeiros – em março e abril – às principais áreas anti-Síria, na qual duas pessoas foram mortas e 25 ficaram feridas. Também houve vários ataques a alvos de trabalhadores sírios no país.
Mas a Síria tem de tratar cuidadosamente também, as questões especialmente onde os Estados Unidos, França e Arábia Saudita estão envolvidas. Esses três governos exerceram mais pressão sobre a Síria para sair do Líbano e gostariam de reagir furiosamente a qualquer sinal de que ela esteja tentando voltar para lá.
Damasco terá de manter seu “bom comportamento” no Líbano, bem como repensar sua política, considerando a presença dos Estados Unidos no Iraque e os esforços de paz para a questão árabe-israelense, disse Paulo Salem, um analista político libanês.
As tropas sírias entraram no Líbano no segundo ano da guerra civil no país (1975-90), e apresentou o número de aproximadamente 40.000 soldados nos momentos de pico, além de centenas de agentes de inteligência que exerceram amplo poder de controle.
A Síria começou retirar-se sob a pressão do assassinato do ex-Primeiro-minitro, Rafik Hariri, ocorrido em 14 em fevereiro. Os líderes da oposição ao governo libanês pró-Síria, e a Síria, foram acusados do envolvimento no assassinato – ambos negaram a acusação. Por volta da época do assassinato havia 14.000 sírios no Líbano.
Ambos os países permanecem ligados pelo acordo de 1991, que estabelecia uma forte cooperação nas áreas da segurança, política externa e economia. Eles [Síria e Líbano] nem mesmo têm relações diplomáticas – um sinal, diz a oposição, de que a Síria não reconhece a soberania do Líbano.
Mesmo os leais membros da oposição anti-Síria têm clamado por boas relações com Damasco, incluindo o ex-líder rebelde do exército cristão, General Michel Aoun. Ele travou uma quixotesca guerra com a Síria em 1989 que terminou com seu exílio na França. Ele agora espera retornar ao Líbano.
Do lado do Líbano “há um compromisso de manter relações estratégicas nos grandes temas com a Síria”, disse o analista Salem.
O leste libanês, Vale do Bekaa, foi uma região estrategicamente importante para a segurança da própria Síria, particularmente em face do arquiinimigo Israel. Mas para os moradores de Bekaa, estratégia e alta diplomacia podem esperar; o certo, agora, é que eles estão saboreando cada simples prazer, como pastorear suas ovelhas pelas instalações militares sírias que estavam fora dos limites deles.
“A liberdade é bela,” disse Salim Rabah, 58, um comerciante aposentado que mora a 450 metros de um posto de controle sírio abandonado.
Entre um grupo de jovens rapazes fumando waterpipes, o consenso era de que a economia melhoraria porque os empregos iriam, num momento não muito distante, para os sírios com contatos junto aos militares.
“Bons ventos os levem,” disse Zakariyya Ghazzawi, 23, um padeiro.
Mas Anwar Sharqiyyah, um fazendeiro de 25 anos, sentiu que faltou dignidade na retirada.
“Os sírios ajudaram a acabar com a Guerra civil libanesa. Eles foram importantes para a estabilidade do país,” disse ele, expressando-se conforme o discurso oficial sírio. “Nós queríamos que eles nos deixassem, mas eles deveriam ter nos deixado de uma maneira mais honrosa”. [11]


Mesmo derrotado na “Revolução do Cedro”, o Hezbollah – declarado aliado sírio – conseguiu obter um resultado de extrema importância nas eleições daquele ano. E, como tranqüilidade não é algo que se preserva por muito tempo no Líbano, além de a fórmula mágica da mídia tender a se repetir numa freqüência mais do que indesejada, em 2006, após um atrito na fronteira israelense, alguns soldados da IDF (Israel Defense Forces) foram assassinados e outros capturados pelo Hezbollah.

O que seria uma situação relativamente comum e controlável, haja vista os atritos nunca terem cessado e a captura de reféns israelenses sempre se dar no intuito de provocar a troca de prisioneiros, dessa vez o governo de Israel não aceitou negociar e programou uma violenta ação armada contra o Líbano que durou 34 dias.

Para quem pretendia, apenas, destruir as bases do Hezbollah no sul do país, a meta original extrapolou as intenções, alcançou Beirute e destruiu praticamente toda a infra-estrutura libanesa.

Com isso, provocou uma reação internacional de emergência que visava retirar a população das áreas mais visadas pelo exército israelense.

No Brasil, dentre as várias críticas que os jornais de grande circulação expuseram, a revista Carta Capital, em sua edição 113, de agosto de 2006, apresentou a visão do jornalista José Abex Jr. sobre os fatos.

Ataque ao Líbano põe fogo no Oriente Médio

Se a questão é mesmo acabar com a ameaça representada pelo Hizbalá, por que o ataque é feito justamente agora? A resposta é simples: a operação, além de ter como objetivo instalar um governo fantoche em Beirute (coisa que Sharon não conseguiu fazer em 1982), obedece hoje aos interesses imediatos de Washington. O pano de fundo de toda a questão é a situação insustentável que o brilhante gênio George Bush armou para si próprio no Iraque. É isso, aliás, que explica o pronto e incondicional apoio de Condoleezza Rice à invasão, contra os clamores da ONU e da comunidade internacional; também explica a recente e extraordinária remessa, ao exército israelense, de um carregamento de bombas estadunidenses de alta precisão, guiadas por laser e capazes de destruir bunkers de concreto, segundo informa o jornal New York Times, edição de 22 de julho.
Mas o que tem a ver a invasão israelense do Líbano com o fiasco de Bush no Iraque? Resposta: o Hizbalá, por mero acaso, é apoiado pelos governos da Síria e do Irã, também acusados de fomentar a resistência dos combatentes iraquianos. Os dois regimes devem ser devidamente “disciplinados”, como condição para permitir aos Estados Unidos construir uma paxamericana minimamente estável no Oriente Médio.Se essa condição não for cumprida, as tropas estadunidenses terão que permanecer indefinidamente no Iraque, pois a Casa Branca jamais poderá correr o risco de entregar o país, ou pelo menos as suas regiões mais ricas em petróleo – razão última da invasão de 2003 –, aos xiitas ou a quaisquer outras forças alinhadas aos governos “terroristas” da Síria e do Irã. Só que os gringos não podem permanecer no Iraque: 3.000 soldados já foram mortos, e a contagem não pára de subir. Chegamos, portanto, na raiz do problema: Damasco e Teerã devem se curvar, ou cair.
A invasão israelense constitui, portanto, apenas um desdobramento de uma tática arquitetada na Casa Branca e executada por Tel Aviv, em nome da pax americana. Essa perspectiva permite compreender, por exemplo, por que os Estados Unidos, aproveitando o grande impacto causado pelo assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri, em fevereiro de 2005, impuseram a retirada de tropas do exército sírio do sul do Líbano, obviamente abrindo o flanco para uma eventual invasão israelense. Simultaneamente, Bush tentou criar, no cenário internacional, as condições políticas para isolar e, eventualmente, atacar o Irã, a pretexto de impedir o desenvolvimento de seu programa nuclear (como, em 2003, o alvo eram as tais “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein).
Em síntese, é disso que se trata: patrocinado por Washington, o governo israelense pratica uma aventura bárbara e criminosa, ditada por interesses e conveniências estratégicas, obviamente contando, para isso, com a cumplicidade ativa ou o silêncio conivente e covarde das ditaduras e monarquias árabes. As demais potências – notadamente União Européia, Rússia e China –, mesmo tendo os seus interesses próprios contrariados pela política expansionista de Washington, não têm vontade política nem se sentem com força para impor qualquer limite real. [12]


Após os trinta e quatro dias da operação militar israelense sobre o Líbano, a única certeza era de que alguma coisa havia dado errado na estratégia de eliminar o poderio militar do Hezbollah. Mesmo com o sul libanês praticamente destruído, o Hezbollah conseguiu manter a resistência contra a invasão israelense. O final dos conflitos apresentou números aterradores: mais de 1000 libaneses mortos (apenas 10% eram militantes do Hezbollah), um milhão de desabrigados e, aproximadamente 160 israelenses mortos.

Tamanho foram o estranhamento e revolta contra a ação israelense que, após o conflito, jornais aventavam possibilidades para o acontecido, inclusive, fazendo alusão ao despreparo das tropas israelenses que foram envolvidas nele. Dentre os jornais que se dedicaram a fazer essa análise, o Le Monde Diplomatique, em setembro de 2006, declarava:

História de um fracasso militar

Instigado pelos planos norte-americanos de um “Novo Oriente Médio” e iludido por seus generais, o governo de Tel Aviv lançou contra o Hezbollah uma guerra desastrada. Não será hora de buscar uma paz duradoura, ao invés de apostar no poderio das armas?

Amnon Kapeliouk

O general Shlomi Cohen comanda a famosa brigada Alexandroni. No dia 15 de agosto de 2006, ao retornar da frente de batalha, ele quer visitar seus soldados. Surpresa: esses se queixam exaltados por não terem sido informados sobre o adversário, nem equipados para afrontá-lo. "Nós nos recusamos a participar da próxima guerra. Nós temos famílias", dizem alguns soldados. O general os acusa de "falta de motivação". O tom se eleva e após ter ameaçado "mandar um soldado para o xadrez", o general deixa o local e todos gritam: "Vergonha!". Uma semana depois, os oficiais da brigada se dirigem ao chefe do estado-maior, Dan Halouz: "tivemos a sensação de que tudo foi mal preparado. Isso nos impediu de ganhar a guerra".
Essa cena foi narrada pela segunda estação da rádio pública. Expressa a confusão, aflição e cólera que reinam em Israel desde a proclamação do cessar-fogo, depois de uma guerra em que o Tsahal, um dos mais poderosos exércitos do mundo, não pôs fim ao Hezbollah, guerrilha de alguns milhares de combatentes. Uma avalanche de revelações se abate sobre a imprensa, desvendando o despreparo e os erros que explicam o custo deste conflito para o país: 160 mortos (119 soldados e 41 civis), cerca de 1500 feridos e um bilhão de dólares de destruições prejudiciais à economia. Isso para não dizer da ambição abortada da criação de um "Novo Oriente Médio", plano do governo Bush, que encorajou Israel a "quebrar os ossos" do Hezbollah...
(...)
Até onde irá a comissão de investigação estabelecida no meio de agosto pelo ministro da Defesa? Ela conseguirá explicar ao país por que os serviços de informação não detectaram a operação do Hezbollah, e não mediram o perigo que seus foguetes representaram para um terço do norte de Israel? Ou poderão explicar, aos desabrigados e desprovidos, o motivo da falta de refúgios em outros locais do país? Dirão aos soldados por que o exército não os preparou decentemente para o combate? "Nos enviaram totalmente despreparados para a guerra. É como pedir a um médico que não pratica a profissão há muito tempo para efetuar uma complicada cirurgia, esperando que ela termine com sucesso", explicou um dos soldados. Mas, a comissão deverá responder, sobretudo, a esta questão: não está na hora de o Estado judeu buscar a garantia de seu futuro, não por meio da força militar (visivelmente enganadora), mas por intermédio de negociações sólidas de paz com os seus vizinhos palestinos, sírios e libaneses? O unilateralismo caro a Sharon e Olmert parece condenado. [13]


Com o final dos conflitos o Hezbollah potencializou o resultado e transformou-se no grande vencedor, nisso, Israel viu-se obrigado a reviver a derrota de 2000. O diferencial, em 2006, foi que naquela ocasião apenas a comunidade xiita reconheceu o Hezbollah como a autêntica Resistência e, em 2006, praticamente toda a população libanesa dedicou à organização xiita o real valor por ter lutado pelo Líbano.

Se, internamente, houve uma conversão de fatores que elegeu o Hezbollah como o bastião da pátria, nos países árabes a repercussão não foi muito diferente. Tal foi a comoção da comunidade árabe que, em muitos países, as diferenças entre xiitas e sunitas foram deixadas de lado para celebrar o poder dos muçulmanos contra Israel.

Richard Norton salienta a repercussão da vitória do Hezbollah junto ao mundo árabe, e como o canal de televisão do Hezbollah, Al-Manar, capitalizou esse momento para difundir ainda mais a mensagem de sua organização.

O exemplo da força militar do Hezbollah contra Israel galvanizou os palestinos que vivem sob a ocupação israelense. Como no passado, quando o sucesso da resistência no sul do Líbano ajudou a inspirar militantes palestinos a empreender sua própria insurgência contra Israel, o sentimento pró-Hezbollah explodiu nos territórios palestinos da Cisjordânia e Faixa de Gaza. Pôsteres e grafites do Hezbollah foram propagados através dos territórios ocupados, e rede de televisão do Hezbollah, Al-Manar, gozou de um impulso de espectadores palestinos, embora a Al-Jazeera permaneça, de longe, a mais popular. A maioria dos palestinos estava apoiando a organização xiita, apesar da ambivalência dentro da Autoridade Palestina, na qual havia a preocupação de que a batalha libanesa deslocasse a atenção da mídia ocidental, afastando a do sofrimento dos palestinos que vivem sob as sanções orquestradas pelos Estados Unidos (Cf. 2007, p. 149-150).

Depois de um momento do total indignação pela ação militar israelense, a mídia foi se afastando dos acontecimentos locais. Ocorre que o Hezbollah capitalizou a vitória contra Israel para tentar reverter seu status político na estrutura político-eleitoral libanesa. Antes tendo sua participação na vida política limitada pelo sistema eleitoral – que estabelece quotas no parlamento para cada grupo religioso, além de atribuir à presidência aos maronitas e o cargo de primeiro-ministro aos sunitas –, com o final da guerra contra Israel o Hezbollah decidiu cobrar o preço pela vitória.

Infelizmente, como o Líbano ainda não encontrou uma fórmula eleitoral que represente com fidelidade a participação dos grupos religiosos na vida política do país, a pressão da organização xiita – insatisfeita com os rumos das negociações para a alteração do sistema político acabou abandonando o Gabinete e passou a fazer oposição ao governo – gerou mais instabilidade no país.

Em 2007, com o final do mandato do Presidente Lahoud, o Líbano não conseguiu abrir o pleito eleitoral para eleger seu sucessor e o país, conforme determina a Constituição, passou a ser governo por uma Comissão. Um triste momento para a história libanesa. Ainda mais quando se percebe que a qualquer momento a fórmula mágica pode ser colocada em prática e o resultado nem sempre é previsível.

NOTAS

[1] “Não encontrarás povo algum que creia em Deus e no Dia do Juízo final, que tenha relações com aqueles que contrariam Deus e o Seu Mensageiro, ainda que sejam seus pais ou seus filhos, seus irmãos ou parentes. Para aqueles, Deus lhes firmou a fé nos corações e os confortou com o Seu Espírito, e os introduzirá em jardins, abaixo dos quais correm os rios, onde morarão eternamente. Deus se comprazerá com eles e eles se comprazerão n'Ele. Estes formam o partido de Deus. Acaso, não é certo que os que formam o partido de Deus serão os bem-aventurados?” (Corão, 28: 22).
[2] Estima-se que no período em que a Guerra Civil transcorreu, aproximadamente 100.000 pessoas foram mortas e outra quantidade igual sofreu algum tipo de ferimento. Um quinto da população residente no país no pré-guerrra, algo em torno de 900.000 pessoas, perdeu suas residências e, desses, talvez a quantia de 250.000 deixou o país para sempre. (Dados fornecidos pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos). Disponível em: www.state.gov.
[3] Apesar de Khomeini ser um dos idealizadores da proposta islamista (fundamentalista) xiita, que repudia as inovações ocidentais, durante o período em que esteve exilado utilizou fitas K7 para gravar seus discursos contra o Xá iraniano e difundi-los para a população. Esse expediente foi um dos grandes motivadores da Revolução Islâmica de 1979.
[4] Para a obtenção de maiores informações acerca dos acontecimentos de Sabra e Shatila, assim como da campanha internacional que se faz para que sejam imputas as devidas penalidades aos responsáveis pelo massacre, consultar o site International Campaign for the Victims of Sabra & Shatila. Disponível em: www.indictsharon.net.
[5] Fonte: Disponível em: www.time.com.
[6] Fonte: Revista Veja, p. 48-53.
[7] A “Zona de Segurança” foi uma região ocupada pelo exército israelense no sul do Líbano a partir da invasão de 1982 (Operação Paz para a Galiléia) e tomava, aproximadamente, dez por cento do total do território. A justificativa israelense era de que, com essa ocupação, conseguiria impedir que o Hezbollah (também a OLP) atingisse o norte de seu país com o lançamento de foguetes.
[8] Fonte: Disponível em: http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2000/10/29/int757.html.
[9] Fonte: Disponível em: http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/middle_east/763504.stm.
[10] Rafik Hariri foi primeiro-ministro por três legislaturas e forte aliado sírio, porém, devido a desavenças com o então Presidente, Emile Lahoud, rompeu com Bashar Assad (presidente sírio) e passou a fazer forte campanha a favor da saída das tropas sírias no Líbano. Detentor de grande influência política na região e internacionalmente, conseguiu mobilizar a mídia internacional para a sua campanha.
[11] Fonte: Disponível em: www.nytimes.com.
[12] Fonte: Disponível em: www.carosamigos.com.br.
[13] Fonte: Disponível em: http//diplo.uol.com.br.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, R. “O islamismo e suas implicações no processo democrático libanês”. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, São Paulo, 2006.
FISK, R. Pity the Nation. Oxford: Oxford University Press, 2001.
LEWIS, B. A Crise do Islã – Guerra Santa e Terror Profano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
NORTON, A. R. Hezbollah. Princeton: Princeton University Press, 2007.
WHITTAKER, D. J. Terrorismo, um Retrato. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2005.

*Renatho Costa é doutorando em História Social pela FFLCH/USP e professor do curso de pós-graduação em Relações Internacionais da FESP/SP.

Thursday, December 11, 2008

HEZBOLLAH DOIS A ZERO: QUEM SAI GANHANDO COM O PLACAR?


Inter Relações - Ano 08 - nº 30 / Outubro 2008 - ISSN: 1808-2831

INICIA A PARTIDA...
Dia 25 de maio o Hezbollah conseguiu emplacar seu segundo gol na partida que quem vem disputando desde sua criação – que se deu no início da década de 1980. A eleição do presidente Michel Suleiman, por uma estranha coincidência, o segundo gol da partida, aconteceu na mesma dada em que o primeiro (2000) – quando houve a retirada das tropas israelenses do sul do Líbano[1].
É bem certo que a eleição de Suleiman não foi assumida, publicamente, pelo Hezbollah como uma vitória partidária. Inclusive, com o discurso conciliador de Suleiman, a proposta foi transmitir o sentimento de que o único vitorioso fora o Líbano. Num tom otimista, o presidente anunciou: "Deixe-nos unidos... [para] trabalharmos no caminho de uma reconciliação sólida (...) Nós pagamos caro pela nossa união. Deixe-nos preservá-la palmo a palmo." (BBC News, 25/05/2008)
Discurso à parte, o fundamental é analisar essa situação à luz dos ganhos obtidos com a mudança que a situação político-eleitoral trará a partir da assimilação da proposta que a Liga Árabe apresentou em maio último, em Doha. A revisão do modelo eleitoral libanês sempre foi um empecilho para o crescimento político do Hezbollah e, para que Suleiman fosse aceito como candidato de consenso e chegasse à presidência, o compromisso de revisão do modelo constou no acordo de Doha.
O grande problema no modelo atual é que, apesar das modificações que sofreu com o Acordo de Taif (1989)[2] – a representatividade passou a ser igualitária, no Parlamento, entre muçulmanos e cristãos –, ainda continuou gerando a sub-representatividade dos muçulmanos, principalmente aos xiitas que, na década de 1990, já formavam a maior comunidade religiosa, individualmente, do Líbano. Assim, ao deter o poder nas mãos de apenas um grupo político, a exclusão dos demais repercute diretamente na dificuldade de construção do sentimento nacional, Lijphart, acerca desse modelo, faz as seguintes considerações:
Nas sociedades mais profundamente divididas, como na Irlanda do Norte [o Líbano também possui tal característica] o governo majoritário implica não propriamente uma democracia, mas sim uma ditadura da maioria e enfrentamento civil. Essas sociedades precisam é de um regime democrático que estimule o consenso, em vez de oposição; que promova a inclusão, em vez da exclusão, e que tente ampliar a maioria governante, em vez de se satisfazer com uma pequena maioria: essa é a democracia de consenso. (2003, p.53)
O modelo consensual, que poderia se apresentar como uma saída viável para o Líbano, implicaria na abertura para a participação maior dos xiitas no governo e, conseqüentemente, perda substancial do poder que encontra-se nas mãos dos cristãos. Em tese, em prol da construção de um estado nacional, não haveria grandes problemas em implantar uma política inclusiva e mais representativa dos segmentos sociais, no entanto, abrir mão do poder, no caso dos cristãos libaneses, poderia significar a abertura do estado para a instauração de um regime teocrático, nos moldes do Irã.
Esse receio de que o Líbano se transforme numa república islâmica advém do conteúdo da Carta Aberta do Hezbollah (1985), que apresentava o programa de prioridades da organização – ainda não era um partido político – e deixava clara sua intenção de reafirmar a luta contra o Ocidente, além de os Maronitas (que exerciam o poder no Líbano e mantinha relações próximas com os israelenses).
No entanto, a Carta Aberta também deve ser analisada à luz do momento histórico que o Líbano vivia, ou seja, com a Guerra Civil em curso e o Hezbollah tendo conseguido obter ganhos substancias para sua causa com o atentado contra os marines (1983) – que fez com que o governo Reagan retirasse suas tropas do Líbano.
Deixe-nos colocá-los [os objetivos do Hezbollah] verdadeiramente: os filhos do Hezbollah sabem quem são seus inimigos principais no Médio Oriente - os Falangistas [milícia do clã maronita Gemayel], Israel, França e os Estados Unidos. Os filhos de nossa ummah [comunidade muçulmana] estão agora em um estado crescente de confrontação com eles, e permanecerão assim até a realização dos seguintes três objetivos: (a) expelir os americanos, os franceses e seus aliados, definitivamente, do Líbano, colocando fim em todas as entidades colonialistas em nossa terra; (b) submeter os Falangistas a um poder justo e levá-los, todos, à justiça pelos crimes que perpetraram contra os muçulmanos e os cristãos; (c) permitir [que] todos os filhos de nosso povo determinem seu futuro e escolham, com toda a liberdade, a forma de governo que desejam. Nós convidamos todos para escolher a opção do governo islâmico que, sozinho, é capaz de garantir a justiça e a liberdade para tudo. Somente um regime islâmico pode interromper todas as tentativas adicionais de infiltração imperialista em nosso país. (Carta Aberta do Hezbollah apud COSTA, 2006, p.293)
No transcorrer desses anos, de 1985 a 2008, o Hezbollah passou por modificações substanciais em seu discurso. Primeiramente, com o a priorização da luta contra o Estado de Israel visou alcançar o apoio dos demais estados árabes que estavam em litígio com os israelenses. Da mesma forma, ao defender a tese de que lutavam pela retomada da soberania territorial do Líbano, automaticamente conseguiam legitimar sua luta perante a comunidade internacional.

UMA MUDANÇA ESTRATÉGICA
Em 1990, com o final da Guerra Civil, o Hezbollah se viu diante do dilema de reafirmar seu posicionamento enquanto organização islamista ou optar pela flexibilização de seu programa e aceitar as regras político-eleitorais, o que implicaria na transformação da organização em partido político. De fato, o pragmatismo venceu e o Hezbollah optou pela participação no jogo político, porém, sem abandonar seu braço militar. Segundo Hamzeh (2004), a opção pela via política só foi possível devido à influência iraniana no processo que fez com que os partidários pela manutenção do estado de guerra contra o Ocidente fossem afastados da liderança e Nasrallah, alçado ao posto de secretário-geral. Um segundo fator que contou para essa mudança de perspectiva do Hezbollah foi o alinhamento de interesses entre iranianos e sírios para que a organização xiita se transformasse num partido político e participasse do pleito eleitoral de 1992 – primeiro depois da guerra civil, que começou em 1975 –, assim poderiam exercer sua influência, também, por vias políticas.
Como partido político, e detentor da legitimidade e legalidade para travar a luta contra o Estado de Israel, o Hezbollah tornou-se o único ator a lutar pela soberania territorial do Líbano. Essa condição foi sustentada até 2000, ocasião em que o poderio militar do Hezbollah sobrepôs-se à milícia cristã que apoiava Israel – SLA (South Lebanon Army) – e, na seqüência, fez com que o exército israelense deixasse a “Zona de Segurança”. Assim, o Líbano voltou a ter seu território reintegrado.
Pela primeira vez na história o exército israelense fora derrotado. Isso, para o Hezbollah fez com que sua popularidade alcançasse todo o mundo árabe. O modelo de atuação da organização xiita passou a ser exaltado pelos islamistas. Estava, ali, o Hezbollah diante de seu primeiro gol. Vencia a partida contra o Estado de Israel, no entanto ela ainda transcorreria e a repercussão dessa vitória precisaria ser analisada, no que tange à política interna libanesa.
No verão que se seguiu à retirada de Israel, um sério debate surgiu no interior do Hezbollah sobre se o foco [de ação] seria dado à questão política libanesa, tal qual a corrupção, ou manteria a postura de resistência no Líbano e no Oriente Médio, concomitantemente. Depois de discussões internas no partido, optou-se pela última estratégia [e] Nasrallah consultou o rakbar (ou líder) iraniano, Aiatolá Ali Khamenei, que deu sua bênção para continuar a resistência, especialmente no cenário israelo-palestino. (NORTON, 2007, p.90)

NOVAS REGRAS EM CAMPO
Com os atentados de 11 de setembro de 2001, as organizações consideradas, pelos Estados Unidos, como terroristas – dentre elas o Hezbollah –, passaram por um período de expectativa para perceber qual seria a estratégia de ação a ser adotada a partir de então. Tendo o Afeganistão e Iraque assumidos a linha de frente na reação estadunidense, o Hezbollah continuou galgando espaço político no Líbano graças à vitória militar obtida em 2000 contra Israel. Se, por um lado, não havia a possibilidade de ampliar a participação no cenário político nacional, por outro, gradualmente o Hezbollah ampliou sua base de apoio nas eleições municipais.
A posição do Hezbollah começou a sofrer algum revés com a campanha contra a presença Síria no Líbano, a partir de 2004. Contudo, como fiel aliado da Síria, o Hezbollah assumiu, com ênfase, posição contrária à vontade da maioria da população libanesa e acabou perdendo dos demais grupos religiosos que haviam solidarizado com sua luta travada contra os israelenses.
A situação do Hezbollah só veio a piorar com a saída das tropas sírias do Líbano em 2005. Apesar de alguns analistas entenderem que os movimentos sociais que impulsionaram esse processo – conhecido como “Revolução do Cedro” – fizeram florescer o sentimento nacional na população libanesa; para o Hezbollah houve uma derrota flagrante. Apoiar a permanência síria, de certa maneira, enfraquecia, inclusive, a causa do Hezbollah pela restauração da soberania do estado. Evidentemente que o argumento aplicado ao Estado de Israel não era estendido à Síria de maneira análoga, os sírios eram tidos como benfeitores que deveriam permanecer no país até se configurar o momento ideal para que o Líbano assumisse a responsabilidade por sua segurança.
O resultado desse apoio ao aliado sírio só não foi pior porque nas eleições que seguiram à retirada síria, o Hezbollah conseguiu ampliar sua base de apoio no Parlamento e aceitou participar do Gabinete pela primeira vez. A alegação para sua não participação anterior advinha do fato de que o partido entendia que se o fizesse estaria endossando a proposta política implantada pelo governo maronita, o que não era interessante.
Com a participação política ampliada, mas sem o apoio militar da Síria, o Hezbollah permaneceu travando sua luta pelo poder somente no âmbito interno até o início do segundo semestre de 2006. Nessa ocasião, uma ação mal planejada na fronteira entre Líbano e Israel levou o Hezbollah a seqüestrar e matar soldados do exército israelense. A impossibilidade de negociação imposta pelo primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, acerca da devolução de prisioneiro do Hezbollah em troca dos militares seqüestrados proporcionou as condições ideais para que Israel programasse sua invasão sobre o sul do Líbano e, também, às principais localidades do país.
A derrota moral que o Hezbollah sofrera ao opor-se à saída das tropas sírias do Líbano foi completamente revertida durante a invasão israelense. Isso porque a milícia xiita foi a única a se opor à violência imposta ao Líbano. Em seus 34 dias de invasão o exército de Israel não conseguiu destruir as bases do Hezbollah, porém, acabou com a infra-instrutora do país e vitimou mais de mil libaneses. Se, por um lado, o Hezbollah tivera que rever sua estratégia de jogo com o revés sofrido em 2005, por outro, com o final do conflito de 2006 e apoio da população libanesa – independentemente de religião –, os xiitas puderam voltar-se para a ofensiva na partida.
A partir do momento que houve o reconhecimento do valor da Resistência contra Israel, o Hezbollah aproveitou o ganho militar para explorar a situação política. Nessa marcha em busca de um novo gol, o Hezbollah apostou alto, exigindo, com isso, uma maior representatividade no governo, caso contrário o deixaria. A segunda opção vingou! Derrota? Não necessariamente.

EM BUSCA DO SEGUNDO GOL
Em novembro de 2007 o mandato do presidente Emile Lahoud chegou ao fim e não houve como encontrar um nome consensual para sucedê-lo. A lacuna de poder provocou a instabilidade política no Líbano e suscitou o risco de o país imergir numa nova guerra civil. O Hezbollah aproveitou o status adquirido após a vitória contra Israel (2006) para cobrar por “seus trabalhos prestados”. A diferença é que a população libanesa (considerando, aqui, os cristãos que reconheceram o valor da participação do Hezbollah na luta contra Israel) até aceitaria o Hezbollah como a Resistência, no entanto, abrir mão de sua participação no poder era uma discussão que não interessava ser travada naquele momento.
De fato, as discussões perduraram até meados de maio, quando, numa atitude de risco, o primeiro-ministro libanês, Fouad Siniora – considerado “pró-Ocidente” –, depôs um chefe de segurança do Aeroporto Internacional do Líbano (partidário do Hezbollah) e fechou a emissora de TV do partido.
O resultado imediato foi o enfrentamento entre sunitas – liderados pelo bloco “pró-Ocidente” – e partidários do Hezbollah – “pró-Síria” – pelas ruas de Beirute e o receio de que estariam na iminência de que os avanços institucionais que o Líbano alcançara desde o fim da guerra civil iriam se perder. Em pouco menos de uma semana de atritos, a cidade de Beirute foi sitiada e os conflitos entre as milícias provocaram a morte de 64 pessoas, além dos feridos. A situação somente começou a reverter quando Siniora recuou com seu decreto e repôs o membro do Hezbollah no posto de comando no Aeroporto Internacional de Beirute, além de possibilitar a reabertura da emissora de TV do partido xiita.
A situação emergencial levou a Liga Árabe a convocar uma reunião em Doha para auxiliar no restabelecimento da governabilidade no Líbano. Nesse momento o Hezbollah conseguiu emplacar seu segundo gol, agora, contra os “pró-Ocidente”. Para que os conflitos cessassem definitivamente e houvesse a aceitação do nome do General Suleiman para a presidência, o partido exigia o direito de veto no novo Gabinete a ser constituído, além de que fosse feita a revisão da lei eleitoral para que os xiitas tivessem uma maior participação.
O que era inaceitável, inicialmente, para o bloco “pró-Ocidente”, acabou se tornando a única saída para que o Líbano não entrasse em um novo conflito interno. O risco em ceder tanto para o Hezbollah advém do receio de que o partido xiita venha a utilizar os meios democráticos para alçar o poder e, uma vez revestido dele, passe a colocar em prática seu projeto de instaurar uma república islâmica no Líbano.
Por outro lado, não aceitar a negociação seria partir para o enfrentamento direto com o Hezbollah e, objetivamente, nenhum grupo religioso no Líbano tem poder de fogo para enfrentá-lo – nem mesmo o exército nacional. Dessa maneira, talvez a escolha tenha sido feita a partir da opção “menos pior” – sob o ponto de vista dos partidários “pró-Ocidente”.
No entanto, apesar desse receio perdurar, é perceptível que o discurso do Hezbollah alterna-se gradativamente e o projeto de criação de uma república islâmica no Líbano vem sendo afastado por seu secretário-geral nas inúmeras vezes que se pronunciou a esse respeito. Segundo Nasrallah, o modelo islâmico ainda continua sendo o ideal, no entanto, no Líbano não há uma conjuntura político-social que viabilize sua implantação.
Por ora, cabe aguardar os desdobramentos dos fatos mais recentes para entender se o segundo gol marcado pelo Hezbollah corresponde a um avanço no sentido de incluir a população xiita no contexto sócio-econômico libanês, ou se servirá como trampolim para o partido galgar o poder e implantar seu projeto islamista.
Nesse sentido, o pragmatismo do Hezbollah é tamanho que ele disputa sua partida como se fosse uma final, alterna momentos de grande euforia com paradas momentâneas para reavaliar a estratégia. Aceita, inclusive, a substituição dos jogadores adversários sem se cansar, porém, no final, cabe a pergunta: contra quem o Hezbollah está jogando afinal? A vitória do Hezbollah representará o fortalecimento do Líbano? Se não for assim e o situação se configurar numa partida cujo único resultado é um jogo de soma zero, ainda assim os adversários evitarão a guerra civil? Como afirma Robert Fisk, “pobre nação”!

Notas:
[1] Essa data é comemorada pela comunidade libanesa e conhecida como “Dia da Vitória”.
[2] O Acordo foi celebrado na cidade de Taif, Arábia Saudita, envolvendo várias camadas da sociedade libanesa – parlamentares, grupos e partidos políticos, milícias e lideranças locais –, e estabeleceu as diretrizes que iriam pautar a vida política libanesa, excluindo o sectarismo e dirimindo as diferenças entre cristãos e muçulmanos. Também, como parte do acordo, as milícias se comprometiam a depor as armas dentro de um período de tempo previamente estabelecido, assim como Israel e Síria deveriam deixar o país para o restabelecimento da soberania territorial libanesa.

Referências:
BBC NEWS. “Lebanon vote ends leader deadlock”, disponível em: < http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/7418953.stm>. Acessado em: 25/05/2008.
COSTA, Renatho. O Islamismo e suas Implicações no Processo Democrático Libanês. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, São Paulo, 2006.
HAMZEH, Ahamad Nizar. In the Path of Hizbullah. Syracuse: Syracuse University Press, 2004.
LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliera, 2003.
NORTON, Augustus Richard. Hezbollah. Princeton: Princeton University Press, 2007.

Tuesday, May 27, 2008

ENTREVISTA À RÁDIO ELDORADO AM

Segunda-feira, 26 de maio de 2008.

Entrevista concedida à jornalista Vanessa di Sevo sobre a eleição do novo presidente libanês, Gal. Michel Suleiman.

Vinheta: Entrevista.

Vanessa Di Sevo: Bom, o Líbano finalmente elegeu e empossou o novo presidente depois de 20 tentativas, desde novembro do ano passado. O Líbano, nós já informamos aqui, depois de uma onda de violência no início do mês. E pra comentar as questões do Líbano, nós convidamos o Professor de Pós-Graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Bom dia, Professor Renatho Costa.

Renatho Costa: Bom dia, Vanessa.

Vanessa Di Sevo: Bom, será que finalmente o Líbano, agora, caminha para a estabilidade?

Renatho Costa: Bom Vanessa, pelo menos agora é o que parece. Nós estamos depois da eleição do Presidente Michel Suleiman, e até a adoção do discurso dele bastante conciliador, é bem provável que dependendo dos desdobramentos – porque quando a gente fala acerca do Líbano é difícil ter uma posição definitiva.

Vanessa Di Sevo: É verdade!

Renatho Costa: Lá as mudanças são muito rápidas e, às vezes, por questões pequenas. Pequenas assim, sob o ponto de vista da repercussão que depois acontece. Mas eu acho que pela adoção do discurso do Presidente, pelo que nós temos percebido nesses dias, quer dizer, nesses momentos. Porque a eleição acabou sendo ontem. Então, é bem provável que nós tenhamos um período de negociações.

Ouça a entrevista completa através do audio, clicando abaixo.

Tuesday, February 19, 2008

ONDE COMEÇA O LÍBANO?

A morte de Imad Mughnieh revive a “Operação Paz para a Galiléia”
Entrevista publicada em CENÁRIO INTERNACIONAL em 18/02/2008 - ISSN 1981-9102. Disponível no site: http://www.cenariointernacional.com.br/default3.asp?s=artigos2.asp&id=69

Renatho Costa*

Dia 12 de fevereiro o Líbano presenciou mais um capítulo de sua infindável, e sangrenta, trajetória de “estado-nação”. Com o assassinato de Imad Mughnieh – um dos líderes do Hezbollah que era procurado pelos serviços de inteligência estadunidense e de Israel, devido às inúmeras ações terroristas [1] atribuídas a ele –, o que, aos olhos dos detratores da ação poderia significar o fim de uma era de terror, reacendeu uma crise que se estende desde 2006, ocasião em que Israel invadiu o Líbano.
Evidentemente que a autoria pelo assassinato do líder do Hezbollah não foi assumida pelo governo de Israel, tampouco pelos Estados Unidos, no entanto, ambos deram a entender que, com a morte do terrorista, o ciclo de terror reduziria, pois a organização xiita libanesa ficaria acuada. Outra razão para que nenhum desses estados assuma a autoria pelo assassinato diz respeito, diretamente, ao fato de que ambos são os grandes porta-vozes da “guerra contra o terror” [2] e, a utilização do mesmo método de seus inimigos para alcançar seus resultados enfraqueceria a proposta. No entanto, a Doutrina Bush não deixa dúvidas acerca dos meios que os Estados Unidos usarão para proteger o mundo da ameaça do terrorismo:

A América irá ajudar as nações que precisarem de nossa assistência no combate ao terror. E a América irá responsabilizar as nações que estejam comprometidas com o terror, inclusive aquelas que abrigam terroristas – porque os aliados do terror são inimigos da civilização [nessa ocasião presidente Bush tentava legitimar a invasão ao Afeganistão, no entanto, esse mesmo argumento sempre foi utilizado para pressionar a Síria]. Os Estados Unidos e os países que estão cooperando conosco não devem permitir que os terroristas criem novas bases. Juntos, iremos procurar negar-lhes refúgio, a cada ocasião. (...) Nossa prioridade será, primeiramente, a de demonstrar e destruir as organizações terroristas de alcance global e atacar suas lideranças, seu comando, seu controle e suas comunicações, seu apoio material e suas finanças. Isso terá um efeito desorganizador sobre a capacidade de terroristas de planejar e operar. (Bush, 2002/2003, p. 79/85)[3] (grifos meus)

Se, por um lado, os idealizadores do atentando em Damasco, contra Mughnieh, quiseram demonstrar aos seus adversários que não há lugar onde estarão seguros, nem mesmo sob a guarda dos aliados sírios, por outro lado, a morte do líder do Hezbollah repercutiu diretamente na situação política libanesa e a inflamou.
O Líbano, após a invasão israelense de 2006, viu-se, mais uma vez, diante do maior problema – ainda não resolvido – de sua história, qual seja, a melhor maneira para representar a sua população no cenário político interno.
A fórmula utilizada na ocasião da criação do estado, em 1943[4], demonstrou-se tão frágil que levou o país a duas guerras civis (1958 e 1975-90). A solução encontrada para por fim à Segunda Guerra Civil, que se deu com a assinatura do Acordo de Taif, em 1990, apenas conseguiu dirimir o problema da representatividade, no entanto, àquela ocasião a população muçulmana já era maior que a cristã e a sub-representatividade política não foi sanada.
E, se em 2000, quando o Hezbollah conseguiu expulsar as tropas israelenses do sul do Líbano, essa vitória repercutiu diretamente na situação política libanesa e fez com que o partido político ampliasse o seu status. Em 2006, ao resistir aos ataques israelenses – mesmo com praticamente toda a infraestrutura do país sendo destruída – e configurar-se como a verdadeira Resistência libanesa, o momento de “cobrar” por seus feitos chegou. Nasrallah, secretário-geral do partido, expunha que as bases gerais para uma futura negociação perpassariam pelo fortalecimento do poder do Hezbollah dentro do cenário político libanês.

O Outono de 2006 foi marcado pela escalada de tensão e cobranças. Em 31 de Outubro, a proposta de Nasrallah para a criação de um governo de unidade nacional transformou-se num flagrante ultimato: o governo deve concordar com o novo arranjo, com o Hezbollah com poder de veto sobre todas as medidas do governo, ou encarar as muito difundidas demonstrações e outras formas de pressão organizada, tal como o bloqueio da rota para o aeroporto internacional. (Norton, 2007, p.155-6)

Assim, o Hezbollah passou a ambicionar e cobrar com mais veemência uma reforma na estrutura política libanesa que visasse ampliar a participação do partido xiita; no entanto, por mais que grande parte da população – muçulmanos e cristãos – tivesse entendido que a participação do Hezbollah teria sido honrosa e dignificante para o Estado (2006), abrir mão de regalias não era algo facilmente assimilável.
As discussões levaram à retirada dos membros do Hezbollah do Gabinete e ao início de uma crise política que não consegue alcançar um fim satisfatório. Com o agravamento da situação, no final de 2007 o presidente Emile Lahoud deixou o governo e o país não conseguiu eleger seu substituto. Quatorze datas foram marcadas para a nova eleição presidencial, mas todas eles foram adiadas.
Com o assassinato de Imad Mughnieh, os dois grandes blocos políticos que se opõem no Líbano encontraram-se para celebrar momentos distintos de sua história. Dia 14 de fevereiro, o grupo que faz oposição à Síria se reuniu nas proximidades da Praça dos Mártires, em Beirute, para celebrar os três anos da morte de Rafik Hariri. Ao sul da capital, o Hezbollah reunia outra multidão para a cerimônia fúnebre de mais um de seus mártires.
Rafik Hariri, com sua morte, foi o viabilizador da “Revolução do Cedro”, a qual trouxe ao Líbano uma possibilidade de união. Durante as manifestações em praça pública, em 2005, a favor ou contra a presença militar síria no Líbano, o que se viu foi uma população empunhando a bandeira do Líbano, não apenas a de seu grupo religioso. Nascia ali o sentimento de estado-nação para aquele povo?
A possibilidade de nascimento de um novo Líbano era mesmo difícil de acreditar. Até porque, depois do fratricídio que acometeu o país por anos de guerra civil, presenciar os vários grupos religiosos empunharem uma mesma bandeira – no intuito de buscar uma identificação com a nação –, era algo que muitos analistas não esperavam ser possível. E, nesse sentido, a morte de Hariri foi extremamente emblemática, por mais que tenha advindo de um atentando terrorista que explodiu o seu carro e vitimou muitas outras pessoas.
Chegamos a Fevereiro de 2007 e a promessa de um Líbano unido torna-se cada vez mais utópica. As divergências entre os grupos religiosos e a inadmissibilidade de ceder parcela do poder para um grupo rival acaba sendo o maior obstáculo a ser ultrapassado. E, quanto mais a situação política libanesa se desestabiliza, mais os grupos religiosos tendem a buscar abrigo junto aos seus pares.
Thomas Friedman, jornalista norte-americano, que fez a cobertura da Segunda Guerra Civil libanesa conseguiu descrever esse sentimento do povo libanês diante da insegurança do Estado:

O indivíduo libanês deriva tradicionalmente sua identidade social e apoio psicológico de suas filiações primordiais: família, bairro, ou comunidade religiosa; dificilmente da nação como um todo. Sempre fora druso, maronita ou sunita antes de se considerar libanês; e sempre membro dos clãs dos Arslan ou Jumblat, antes de ser druso; ou parte dos clãs maronitas Gemayel ou Franjieh, antes de ser maronita. A guerra civil e a invasão israelense só fizeram reforçar essa tendência, dividindo os libaneses em microfamílias, ou comunidades de aldeias ou religiosas muito mais unidas, ainda que os afastasse mais uns dos outros enquanto nação. (1991, p. 56)

Se o Líbano já vivia uma forte tensão política com a dificuldade de escolher um nome conciliador para governar o país e encontrar uma fórmula para estabelecer a divisão do poder dentro do Gabinete, a morte de Mughnieh talvez possa vir a representar o mesmo que a “Operação Paz para a Galiléia” significou em 1982.
A criação da “Zona de Segurança” em território libanês – resultado da invasão israelense de 1982 – abriu uma nova frente de batalha dentro da guerra civil libanesa e fez com que o surgimento do Hezbollah fosse acelerado. Agora, quando a instabilidade política libanesa parecia ser a grande batalha do Hezbollah, a morte de seu líder revitaliza essa frente de batalha.
Nasrallah, em seu discurso durante a cerimônia fúnebre de Imad Mughnieh, deixou bem claro que sua organização não recuará diante do crime e que a guerra contra o Estado de Israel extrapolará as fronteiras do Líbano:

“Vocês cruzaram as fronteiras," [em referência à morte de Mughnieh ter sido na Síria] disse ele [Nasrallah] num discurso que estava especialmente veemente, mesmo para o padrão belicoso de Nasrallah. "Sionistas, se vocês querem esse tipo de guerra aberta, então deixe estar, e deixe que o mundo inteiro ouça: Nós, como qualquer outro povo, temos o sagrado direito de nos defender, e qualquer coisa que precisarmos fazer para nos defender, nós faremos." (Shadid, The Washington Post, 14/02/2008) (grifos meus)

Assim terminou mais um capítulo da incerta história do estado libanês: com sua população dividida e celebrando seus mortos. Hariri e Mughnieh talvez tenham seguido trajetórias distintas em suas vidas, no entanto, além de terem sido vitimados pelo mesmo tipo de atentado, foram além: em 14 de fevereiro fizeram o Líbano parar e lançaram mais uma dúvida sobre o futuro do país: Onde começa o Líbano?
Porque essa é a única pergunta que precisa ser respondida nesse momento. Se os clãs religiosos conseguirem reascender o sentimento que brotou na “Revolução do Cedro”, pode ser que ainda seja possível evitar uma Terceira Guerra Civil, no entanto, é necessário, também, que os demais atores que transitam pelo sistema internacional deixem de querer resolver suas pendência em campo libanês.
O Líbano serviu como campo de batalha para resolver os problemas de muitos países durante a Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética, direta e indiretamente, usaram seus canais de influência para dificultar a estabilidade política libanesa. Na seqüência, a dificuldade de resolver a “Questão Palestina” em seu território deslocou o conflito para o Líbano. A OLP (Organização para a Libertação da Palestina, na época, liderada por Yasser Arafat) deslocou-se para o Líbano e trouxe consigo Israel.
A morte de Imad Mughnieh, de fato, traz tranqüilidade para as vítimas das ações atribuídas a ele ou, novamente – considerando a invasão israelense de 2006 como um fiasco –, se traduz em mais um erro estratégico e coloca a população judaica de todo o mundo sob a mira da revanche do Hezbollah?
Esperemos os próximos lances dessa partida porque o final, quando se trata do Líbano, é sempre uma incógnita!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bush, George W. “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América” in: Política Externa, São Paulo: Ed. Paz e Terra, Gacint/USP, IEEI, vol. 11, nº 03, dez/jan/fev, 2002/2003, p. 78-113.
Friedman, Thomas. De Beirute a Jerusalém. São Paulo: Bertrand, 3ª edição, 1991.
Norton, Augustus Richard. Hezbollah. Princeton: Princeton University Press, 2007.
Shadid, Anthony. “Hezbollah Chief Threatens Attacks Against Israel - Group Blames Israel for Top Commander's Death” in: The Washington Post, edição de 14/02/2008. Disponível em: www.washingtonpost.com.

Notas:
*Doutorando em História Social pela FFLCH-USP, Mestre em História Social, também pela FFLCH-USP e Bacharel em Relações Internacional pela FASM-SP. Especialista em Terrorismo e Estudos do Oriente Médio. Professor do curso de Pós-Graduação em Relações Internacionais da FESPSP.
[1] Em 1982, durante a Segunda Guerra Civil libanesa (1975-90) as tropas estadunidenses foram enviadas ao país para auxiliar na retirada da OLP do território e lá permaneceram até o ano seguinte, ocasião em que entraram em atrito com milicianos muçulmanos (em apoio aos maronitas) e passaram a ser considerados apoiadores de Israel. Como represália, Mughnieh teria programado um atentado à bomba contra o quartel dos marines, o qual vitimou 241 militares. Também, em 1992, numa suposta represália ao assassinato do líder do Hezbollah na ocasião, Musawi, pelo serviço de inteligência israelense, Mughnieh teria organizado um atentado à embaixada israelense em Buenos Aires e, na seqüencia, em 1994, à AMIA, associação beneficente de judeus.
[2] Idealizada pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no momento subseqüente aos ataques às Torres Gêmeas em Nova York e ao Pentágono, em Washington (2001), e conhecida por “Doutrina Bush”.
[3] Esse fragmento de texto faz parte do documento intitulado “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América”, que ficou mais conhecido como Doutrina Bush. Ele foi redigido em 17/09/2002 e enviado ao Congresso dos EUA em 20/09/2002.
[4] A presidência seria destinada ao grupo religioso com maior população (maronita); o cargo de primeiro-ministro caberia a um muçulmano (sunita) e, posteriormente, o cargo de chefe do parlamento acabou sendo destinado a um muçulmano xiita. A representação no parlamento se daria na proporção de 6 para 5 em favor dos cristão.

Sunday, June 03, 2007

HIZBULLAH - QUANDO DEUS TEM DE ESCOLHER SEUS CORRELIGIONÁRIOS

Renatho Costa*

Em 2005, com a saída das tropas sírias do Líbano – que lá permaneciam desde 1976 –, a situação política do Hizbullah pareceu que ficaria abalada devido à perda do prestígio que lhe era atribuído pelo forte aliado. Com o Ocidente atento às ações do governo de Bashir al-Assad, a Síria parecia estar com seus dias contados – no que tange à interferência na política libanesa –, no entanto não foi exatamente esse cenário que prosperou.
Com a eleição parlamentar de 2005, apesar da vitória dos opositores da presença síria no Líbano, o Hizbullah conseguiu eleger mais parlamentares que em qualquer outra eleição. Fato esse que possibilitou sua participação no gabinete do Primeiro-ministro Fouad Siniora – contrário à presença síria no Líbano.
Assim, a análise mais viável era de que o Hizbullah seguiria a mesma trajetória de vários outros partidos políticos ocidentais que, diante do crescimento de sua base de apoio e reconhecimento de sua representatividade pelo Estado, ampliaria ainda mais sua participação no Parlamento. Exceto pelo fato de que, segundo o acerto político que vigora no Líbano desde sua independência (1943)
[1], cada grupo religioso teria direito a determinado número fixo de representantes no Parlamento, impossibilitando, com isso, a ampliação do número pré-estabelecido para os xiitas.
Em 1990, com a assinatura do Acordo de Taif, que colocou fim à Guerra Civil (1975-90), a participação dos muçulmanos foi equiparada a dos cristãos, assim, cada um passou a ter o direito de eleger 50% dos membros do Parlamento. Essa proporção também deveria expandir-se para a administração pública.
Um dos primeiros equívocos foi de que, apesar de ter havia a equiparação do número de representantes no Parlamento entre muçulmanos e cristãos, a realidade não mais se apresentava dessa maneira. Há muito tempo os muçulmanos já haviam superado o número de cristãos no país e, dentre os muçulmanos, o grupo dos xiitas era o que mais crescera. Então, ainda que tivesse havido um ganho político substancial para os muçulmanos, a sensação de sub-representatividade ainda perdurava, especialmente se levado em consideração que no âmbito sócio-econômico não ocorreu melhoras para os xiitas.
Assim, retomando aos acontecimentos de 2005, a vitória do Hizbullah sugeria um cenário em que o partido xiita estaria galgando mais poder, no entanto, com um limite que não poderia ser transposto e que, por sua vez, preservaria a característica confessional do regime político em vigor no país. Com o Hizbullah sem o efetivo apoio político-militar da Síria, talvez, o melhor caminho a seguir fosse trilhar sua trajetória dentro dos padrões democráticos ocidentais que gradativamente vinha sendo assimilado pelo partido, o qual outrora abraçava o ideal islamista e não abria concessões para a flexibilização de seu projeto.
Assentado na estrutura política libanesa, o Hizbullah continuou criticando as concessões que o governo libanês de Siniora fazia ao Ocidente e, reiterou a defesa do estreitamento de relações com o governo sírio. Por determinado período, as colocações que muitos analistas – como Martin Kramer – faziam acerca de o Hizbullah intencionar inserir-se no sistema político libanês para, quando obtivesse condições favoráveis, passar a implementar sua política islamista, tornou-se mera “teoria conspiratória”. Em muitos aspectos, o Hizbullah dava a entender que seu pragmatismo superara o islamismo. A milícia que nascera para defender a soberania do Estado libanês, e, por sua vez, passou a ser considerada terrorista pelo Ocidente, por força de seu pragmatismo galgou o status de partido político e agora se encontrava dentre os maiores e mais poderosos do Líbano – com uma estrutura que rivalizava o poderio do Estado.
Nunca fora possível aventar a possibilidade de que uma organização xiita islamista, como o Hizbullah, fosse capaz de fazer tantas concessões para poder participar da política libanesa e aceitar seus pressupostos – contrários ao projeto islamista que sempre fora defendido pela organização desde seus primórdios, no início dos anos de 1980. Mas o Hizbullah sobreviveu à Guerra Civil, às invasões israelenses e à saída síria do país. Continuou admirando o modelo político-religioso iraniano, mas criou mecanismos que o transformou num organismo político independente, e não um mero satélite do governo dos aiatolás, ou mesmo da Casa dos Assad.
No entanto, quando tudo parecia seguir o rumo da comunhão de interesses e, pela primeira vez houvera o surgimento de um “sentimento nacional libanês”
[2], um atrito, em meados de 2006, entre Hizbullah e o exército israelense, mudou o panorama do jogo interno e externo no Líbano e repercutiu em todo o Oriente Médio.
Apesar de Israel ter se retirado do território libanês em 2000, a região fronteiriça entre os dois países manteve a tensão. Os territórios continuavam sendo violados com freqüência pelos dois lados e, por essa razão, o Hizbullah já seqüestrara membros do exército israelense para servir de barganha por prisioneiros seus. Contudo, em julho de 2006, após uma ação do Hizbullah que resultou na morte três militares israelenses e seqüestro de dois soldados, o governo de Israel não aceitou negociar. Exigiu a devolução de seus soldados sem qualquer contrapartida.
A recusa do Hizbullah possibilitou a Israel invadir o Líbano e destruir completamente o sul do país, além de grande parte da infra-estrutura de outras regiões. O país sofreu um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo. Em pouco mais de 30 dias houve a destruição do país e o objetivo de Israel acabou não sendo alcançado: o Hizbullah não foi destruído e seus soldados não foram devolvidos.
A partir do cessar fogo estabelecido e, mesmo diante do fato de o Hizbullah ter sofrido baixas substanciais, a milícia (e partido político) xiita, não esmoreceu. Como fora a única força militar que se posicionou contra os ataques israelenses, acabou ganhando apoio de vários outros segmentos religiosos do país.
Findado o conflito, Israel, pelo menos num primeiro momento, saiu-se caracterizado como um péssimo estrategista. A vitória moral do Hizbullah abriu caminho para que seus questionamentos ganhassem mais força. Externamente o Hizbullah – que já era idealizado pelas organizações islamistas devido a seu sucesso obtido com a expulsão de Israel de território libanês em 2000 –, conseguiu tornar-se uma unanimidade. Pela segunda vez em sua história conseguiu impor a derrota aos israelenses
[3].
A partir daquele momento passamos a ver um novo Hizbullah, ou talvez um antigo. Segundo Nasrallah, secretário-geral do partido, o projeto para o Líbano sempre foi o de estabelecer, ali, uma República Islâmica aos moldes do Irã, contudo, como ele mesmo afirmara, a conjuntura não permitia a implementação de tal projeto, assim, o Hizbullah se moldara às condições políticas mais viáveis.
Com o grande apoio alcançado pelo Hizbullah, seus representantes passaram a questionar a predominância de partidários “pró-Ocidente” no governo, sendo que eles não lutaram contra Israel. O governo de Siniora passou a sofrer grande pressão por parte do Hizbullah para renunciar e abrir caminho para uma nova eleição – em tese, que referendaria a vitória do partido xiita.
Com o apoio do Ocidente, Siniora não renuncia e tenta encontrar uma maneira para que a perda política não seja tão devastadora. O Hizbullah, ao retirar seus membros do Gabinete – uma vez que não foi aceita sua proposta de ampliar sua participação no mesmo, passando a ter oito representantes –, abriu caminho para a discussão de questões há muito tempo “engavetadas”, dentre elas: a sub-representatividade política da comunidade muçulmana.
Rever esse equilíbrio de poderes sempre foi um tema muito delicado. Os cristãos, de certa forma, aceitavam a manutenção do Hizbullah como um partido político e milícia, desde que não houvesse o questionamento explícito de sua preponderância política. E, concomitantemente, os xiitas do Hizbullah tinham a liberdade de “governar” nas regiões de predominância xiita, sem interferência direta do Estado. No entanto, a vitória moral do Hizbullah e a ampliação de sua base de apoio possibilitaram que seus membros entrassem no mérito da questão relativa à participação xiita no governo.
Hoje, como em 1975, o Líbano encontra-se dividido em dois grupos: os partidários do Hizbullah – com apoio do cristão Michel Aoun, alguns drusos e da Síria – e o “Grupo 14 de Março”, que congrega vários grupos religiosos que são contra a presença síria e dão apoio ao Primeiro-ministro Siniora.
Em 1975, a questão relativa ao sectarismo levou o país à guerra civil e, por conseguinte, à destruição. Naquele momento tínhamos a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) instalada no Líbano, e que provocou a invasão do mesmo por Israel em 1978 e 1982. Os grupos religiosos libaneses também se dividiram – no que tange ao apoio aos palestinos –, e esse fato acabou gerando o agravamento do conflito.
Em 2007 temos um Hizbullah pleiteando maior representatividade no poder e o risco de que seu discurso islamista possa ser colocado em prática se o governo de Siniora resignar-se. Por outro lado, os questionamentos do Hizbullah acerca de uma maior participação muçulmana no governo são condizentes com o atual perfil do país. Cabe saber se será possível encontrar uma nova fórmula que contemple aos interesses de todos os envolvidos.
Parece que, indiretamente, Israel, ao invés de derrotar o Hizbullah, potencializou a organização. Ainda abriu a possibilidade para que ela mostre sua real face, ou seja, se, de fato, se transformou num partido político – aos moldes do Ocidente – ou, se o pragmatismo tão constante nas relações entre o Hizbullah e os demais atores nacionais e internacionais somente foi necessário para chegar a esse momento e que, a partir de agora será implantado seu programa islamista.
Também, esse é o momento de saber como seria a estrutura desse novo governo proposto pelo Hizbullah, caso ainda mantenha uma proposta conciliadora. Se, por ventura, o Hizbullah conseguir chegar a um acordo satisfatório que não gere uma nova guerra civil, ainda assim caberá a pergunta: como será um governo em que o Hizbullah tenha direito de veto? O mais importante será saber quem “Deus escolherá para ter como correligionário em seu partido”, porque se a exclusão for muito grande, o próximo governo estará fadado ao fracasso, assim como o de Siniora.Ceder é um ato bastante perigoso nesse momento, haja vista o Hizbullah estar numa posição privilegiada na negociação; no entanto, se o impasse continuar, o país caminhará lentamente a um estágio de insustentabilidade. E, como a história libanesa mostra, depois de iniciado um conflito, muitos atores externos quererão entrar na arena para tirar vantagens. Assim, o único que sai destruído é o Líbano, incansável no processo de reconstrução.

BIBLIOGRAFIA

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www.merip.org.



Notas:
* Doutorando em História Social (USP), Mestre em História Social (USP) e Bacharel em Relações Internacionais (FASM-SP).
[1] Nessa ocasião o acordo estabeleceu que a representatividade entre cristãos e muçulmanos seria da ordem de 6 para 5 – em favor dos primeiros. Esse acordo ficou conhecido como Pacto Nacional, no entanto, não foi um documento formal e assinado pelas partes, apenas reconhecido verbalmente.
[2] Durante as manifestações que se seguiram à morte do Primeiro-ministro Rafiq Hariri, no início de 2005, e que levaram a Síria a deixar o Líbano, o que se via nas ruas era o clamor pela “independência”. Independentemente de haver partidários da manutenção dos exércitos sírios no país, em todas as manifestações era possível perceber a presença da bandeira libanesa acima das demais. Um sentimento nacional possibilitou que se vislumbrasse o surgimento de um real “estado-nação”.
[3] Evidentemente que essa vitória deve ser considerada apenas no panorama político, haja vista ter havido a destruição de grande parte do arsenal do Hizbullah e sua perda humana ser muito superior à israelense. Em números gerais houve a morte de mais de 1600 libaneses, dentre eles, apenas 10% faziam parte da milícia. No entanto, o número de desabrigado ultrapassa a cifra 200.000.